A Morte

A Morte
óleo s/tela de Guilherme de Faria 1967

domingo, 28 de fevereiro de 2010

O Cenário (de Alma Welt)

Passamos a vida a construir
Um cenário coerente, quero crer,
Para podermos simplesmente ser,
Despojados da idéia do porvir,

Que é a maldição da consciência,
O rubro fruto amargo da Razão,
Que nos trouxe angústia e aflição,
Por nos ser da Morte a vã vivência.

Mas, pensando bem, nosso animal
Resta-nos no âmbito do instinto
E dele vem o tal terror fatal...

E sofro, hesito e me debato
Ante o Nada que será o entreato,
Ou a tela em branco que não pinto...

(sem data)

O Retorno II (de Alma Welt)

A Aurora do Homem está por vir
Quando sem o medo que o atrasa,
Andará, sem choro ou mesmo rir,
Sobre a Terra que será a sua casa.

Já o vemos: é uma luz na multidão
Que se espalha e abre uma cortina
No antigo e endurecido coração
Que treme pois ainda a raiva o mina

Contra a dura maldição do Criador
Que nos lançou também contra a mãe Gea
Numa fúria de revanche e de rancor.

E voltaremos às terras e às águas,
Como bem antes daquela má idéia
Que nos deu menos prazeres do que mágoas...

23/07/2006

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

A Solidão do Poeta (de Alma Welt)

Não espero ser bem compreendida
Pelos anos em que vivo ou logo após,
Mas se a Arte é solidão atroz,
É abraço também na despedida...

É consolo, pranto em ombro quente,
Pois que tudo é matéria de poesia,
É um olhar incólume entre a gente,
Mas que tudo colhe e se apropria.

E se à vezes me sinto assim tão só,
A ponto de gritar contra as paredes
Ou sair rolando nua pelo pó,

Eu me envergonho logo da fraqueza,
Ante vós, outros poetas que me ledes,
E volto a assumir minha riqueza...

21/07/2006

O Poeta e o levante (de Alma Welt)

Através dos milênios à porfia,
Carrega o poeta a sua tocha,
E o tão sagrado fogo da Poesia
Pesado vai ficando, como rocha.

A solidão aumenta a cada século,
Que, nós, milênios dentro carregamos,
Que ser poeta é ser como um espéculo
Da espécie que o saber e dor herdamos.

Que importa se o tempo nos compreende!
A missão é passar o fogo adiante,
Um poeta com outro só se entende

Desde o nadir do ser, de trás pra diante,
Como esgarçada malha que se estende,
A esperar de nós nosso levante...

(sem data)

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Ode à Alegria (de Alma Welt)

A dor do mundo vem do coração,
De nossa angústia, peso e compunção;
Mas a alegria, ah! essa é profunda,
Que de água meus olhos quase inunda.

É a tal celebração na despedida,
E o abraço ardente na chegada;
É quando mais a gente fica unida
E mais se sente amar e ser amada.

Mas se só amamos quem amamos,
Perdemos o valor de sermos homens
Em meio a tantas lutas e desordens.

Alegria congrega e unifica,
Traz de volta a inocência e reivindica
O Éden que era em nós, e o deixamos...

(sem data)

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

A Nau, ou O Mistério de Viver (de Alma Welt)

É tão fina a sintonia do real
Que podemos perdê-la por descuido.
O menor toque errado no dial
E teremos só estática, ruído,

Além dos tais fantasmas do passado,
Aqueles que geramos todo dia
Formando, paralelo, um outro fado,
Que da rota verdadeira nos desvia.

Mas, o mistério de ser e estar na vida
É que sendo tão frágil o equilíbrio
Como nau na procela enraivecida

Que quer ver capitão vencido e morto,
Singramos e empenhamos nosso brio
Qual se nos aguardasse um belo porto...

28/09/2006

Funhouse (de Alma Welt)

Quantos mundos existirão no mundo?
Infinitos, responderei com espanto.
E entre tantos, só já não confundo
O que demônio é... e o que é santo.

Vejo reflexos, ouço ressonâncias,
Fragmentos que formam um mosaico,
Fazendo do real e suas instâncias
Um jogo de montar um tanto arcaico.

Assim, nada é mesmo o que parece,
E é preciso cada fato interpretar
Para entender a teia que se tece.

Mas não pode apostar em seu juízo
Quem, por viver, como eu crê habitar
Uma casa de espelhos e de riso...

14/05/2005

O ser e o nada (de Alma Welt)

Não podemos entender o que é Morte
Tampouco sabemos o que é Vida
A cultura quer trazer algum aporte,
A coisa é o que lhe é atribuída.

Mas se nossos hábitos deixamos
E esquecemos um pouco das lições,
Nada refaz o senso que emprestamos,
Cai o mistério sobre as mínimas ações.

Vede como é fútil o dia a dia,
A passagem das horas é atroz,
Nos debatemos a falar algaravia,

Um código de sons balbuciados,
Mero jogo de crianças nos gramados
Enquanto avança a sombra sobre nós...

(sem data)

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Cada homem é uma Ilha, ou Os sonhos da Razão (de Alma Welt)

Poderemos conhecer um ser humano?
Nossas mentes poderão sintonizar
E as palavras e os sentidos conformar
Sem incorrer no velho ledo engano?

Cada um de nós é só uma ilha
Perdida na imensidão do pélago,
Ou então com espaços de uma milha
Formamos infinito arquipélago.

Os continentes?... são inflados egos,
Contrariando a proposta do poeta
Que estava a escrever para uma neta

Ou para alunos jovens bem bisonhos
E tratava de mantê-los todos cegos,
Que da Razão os sonhos são medonhos...

(sem data)

Nota
Como alguns leitores já perceberam, minha irmã, a grande Poetisa Alma Welt, não tinha compromisso com pensamentos bem comportados, ou com o politicamente correto. Nada de pontificantes sentenças morais e caminhos a seguir. Ela tinha o elevado pessimismo dos verdadeiros idealistas. Seu questionamento do ser e do sentido insondável da vida, era rebelde e só não desesperado por conta de seu gosto inabalável pela beleza trágica da vida. Neste soneto ela faz uma paráfase antitética dos versos de John Donne: " Nenhum homem é uma ilha"..... "todos somos parte do continente". E uma alusão ao dístico de uma gravura de Goya : "El sueño de la Razón produces monstruos".
(Lucia Welt)