A Morte

A Morte
óleo s/tela de Guilherme de Faria 1967

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

O Pampa de Alma Welt (pintura de Guilherme de Faria)


O Pampa de Alma Welt- óleo s/tela de Guilherme de Faria, de 30x40cm (na folha de papel pendurada no galho do toco, o artista transcreveu de maneira microscópica um trecho do poema Pampa, da poetisa gaúcha, somente possível de ler com lente conta-fio.

sábado, 22 de setembro de 2007

Penélope (de Alma Welt)

Para enfrentar a morte escrevo,
Que é o único combate com o ogro
Que posso travar com algum enlevo
E que não redundará em vil malogro.

Pois sabemos que a letra permanece
Como uma fantástica lanterna
Que ilumina a trama que se tece
No silencioso tear da noite eterna

Produzindo uma teia inacabada
Como aquela da viúva inconformada
Que sabia dar ao tempo a sua medida,

E no final, no pouco que restara
Do painel da batalha desmedida
A sua própria saga ela plasmara.

29/12/2006

Sonetos Metafísicos da Alma (de Alma Welt)


A invocação mágica de Alma Welt" - óleo s/ tela de Guilherme de
Faria, de 150x150cm, coleção particular, São Paulo



SONETOS METAFÍSICOS DA ALMA
(Alma Welt)

1
Deste canto solitário do meu quarto
Avisto a minha vida projetada
Na parede branca, como o parto
Que me lançou na luz, tão deslumbrada.

Alguém me diz que somos para a morte,
Mas não posso isso aceitar tão facilmente,
O que prova que sou jovem, tão somente,
E insisto que aquilo é só um corte,

Ruptura, estrago, ou acidente...
E a vejo como falha, a cada dia,
Uma vez que a vida dela se ressente,

Pois é visível o susto e a rebeldia
No animal que somos, quando em frente
A essa quimera, que o instinto desafia!


2
Na viagem de minha vida solitária
Tenho todo o tempo pra sonhar,
Mas sento-me à janela, que, contrária,
Busca distrair o meu olhar.

Assim vejo a mim mesma contra o fundo
De um cenário mutável e veloz
Que é o retrato dinâmico do mundo
Transformado em filme como nós

Que custamos a entender as tramas várias,
Confundidos com o nosso personagem
Em tomadas assim fragmentárias

Que é preciso editar para entender
O sentido linear e a mensagem
Que somente o Diretor logra saber...


3
Sob a luz que cai sobre esta mesa
Coloco minhas mãos solenemente
E olho longamente a forma tesa
Dos dedos estendidos tensamente

Mas logo descontraio os mesmos dedos
E deixo-os pousados, assim quedos,
Como folhas caídas no poente
De um outono doce, evanescente.

E percebo os dois tonos desta vida
Que, grave, submeto ao meu tino,
Como fui por mim mesma escolhida,

Lançada sobre a mesa como um dado
Da vida, sob o fuso do Destino,
Mas livre para a escolha do meu fado.


4
Outrora caminhei sobre um jardim
De flores densamente alcatifado,
Em que cores e perfumes, para mim,
Eram meu próprio corpo projetado.

Pois criança, estendia meus limites,
Já que as doces coisas tão queridas
Me cercavam lançando seus convites
Confundindo-me à suas próprias vidas.

Crescer foi um processo, para mim,
Doloroso, do cortar de mil gavinhas
Como orquídea transplantada de xaxim.

E me vejo exilada do jardim
Qual de um mágico buquê dessas florinhas,
Como ervas são podadas, por daninhas.


5
Volto ao pomar da minha infância
Lembrada qual se fosse a Grande Era,
Comovida com os ecos à distância
Que a própria memória reverbera.

Caminho ao redor da macieira
Como outrora, com a mesma sensação
De ouvir mais claro o sopro e o coração,
Junto às raízes em que estou inteira.

E confiro junto ao tronco e suas folhas,
Do meu destino o preço e a missão,
Pedindo só ao Tempo: “Não me tolhas,”

“Me deixa completar a minha sina
Seguindo do meu ser a inclinação
Como a semente ao fruto se destina!”


6
Aproximo-me da tela ainda vazia
Com vago temor, mas instigada:
Um impulso poderoso principia
E permite a primeira pincelada.

Qual pulsão rompe a inércia num momento?
Seria talvez este o pensamento
Se tal ato fosse fruto da razão.
Mas longe, seguindo o coração,

Que não cogita e baila entre as cores
Numa dança fantástica, febril,
Sentindo até, das tintas, os sabores,

Percebo quão grande privilégio
É persistir nesta vivência pueril
Que rege meu destino em sortilégio...


7
Sob o cone de luz, que me deslumbra,
Cercada do bailar dos filamentos,
Dissipo no Tempo meus momentos
E sinto a alma sair de sua penumbra.

E vejo-me a mim, melhor, me sinto
Neste turbilhão tão silencioso
Cintilante, como em tela às vezes pinto
O espaço ideal, com tanto gozo.

E é claro, para mim, esse sentido
Do surgir, e após o brilho pressentido
Mergulhar no Nada, novamente,

Numa eterna dança coruscante,
Que consola meu corpo e minha mente
Com ser eterna, e bela, num instante.


8
Quando chegar o meu momento
Quero olhar a vida num relance
E vê-la inteira, sem tormento,
Polida, completa, ao meu alcance

Como em mármore, escultura acabada,
Obra-prima que por ser assim perfeita
Merece a atenção, que nela deita,
E repousa na beleza, apaziguada.

Pois que Vida e arte, uma só
Visão, tarefa, obra, sai da alma
E dura como se não fosse pó.

Assim ludibriamos nossa morte
E sentimos como a vida então se acalma
Por um tempo bem maior que a nossa sorte.


9
Se penso nos amores que vivi
E o quanto dissipei-me nesta vida,
Percebo que nada então perdi
E a glória de entregar-me, assumida

Me orgulha, que sendo só mulher
Devo tudo ao coração e a esta pele
Que em plena glória assim se quer
Tomada, possuída, e não repele

As carícias legítimas de amantes
Na lembrança feliz deste meu ser:
Homens, mulheres, apenas por instantes...

E quando envelhecer, quanto prazer
Penso ainda fruir, pois que a história
Do coração não envelhece em sua memória!


10
Um desenho lançado no papel
No plano e no espaço simultâneos,
Se insere naquele tênue véu
Que plasma da vida os instantâneos,

Como película ou filme que então capta
Da vida o movimento congelado
Em fotograma assim eternizado,
Que a imaginação persegue e rapta.

Mas por vibrar assim, dupla verdade,
Plano e espaço concomitantemente,
Trazendo a sensação de eternidade,

Por isso é o Desenho tão constante:
Perseguidos pelo Eterno, eternamente,
Para alçarmo-nos do pó, por um instante.

FIM

Sonetos Metafísicos da Alma (II) (de Alma Welt)


Paisagem- óleo s/tela, de 120x150cm, de Guilherme de Faria, coleção particular, São Paulo


Índice

1 Soneto de Candura
2 Elíseos
3 Ananke
4 Jocosa física
5 O Vazio
6 Metamorfoses
7 Nightmare
8 Bucólica
9 Days of wine and roses
10 Délire de Grandeur


Soneto de Candura

1
Aproxima-se a estação festiva
E eu, da minha janela para o mundo
Indago-me se ainda estou viva
Se o meu viver assim me vem do fundo

Da alma, ou se acaso ainda me encolho
No grande útero ideal em que me aninho
Á custa da beleza que recolho
Como palha e gravetos para um ninho.

Lá fora, na real periferia
Sei que me espera a alegria
Sincera, que a face lhes decora

Pois da humana condição sempre me alegra
A tocante ingenuidade que vigora
No coração, que à luz assim se integra.



Elíseos

2
Ao longe bate um sino insuspeitado
Na grande cidade barulhenta
Recriando um prado recortado
Na alma, por corrente muito lenta.

E atraída pelo som das badaladas
Encontro a capela que me chama
Para o encontro matinal, longe da cama,
Para onde me atraíram minhas passadas

E à minha própria alma neste templo
O meu coração se sente grato
Por esse paraíso que contemplo

Sentada no banco de madeira
Deixando fluir o tal regato
Que vi dentro de mim dessa maneira.



Ananke
3
Eu vi o grande fuso do Destino
Atravessando o céu e a terra num cilindro
De luz, bobinando lento e lindo
Das três Parcas aquele fio tão fino.

Passado, Presente e Futuro
Eu vi de uma só vez nesse momento
E com o mesmo olhar ainda perduro
Perplexa, com o mesmo sentimento,

Pois tive do Mistério a vertigem
Pr fração do Tempo eternizada
E vi do Edifício a fachada,

Embora o alicerce ou sua origem
Permaneça na alma ainda virgem
E a razão de tudo, intocada.


Jocosa Física
4
Há muito me encontro persuadida
De que Deus é mesmo o Sol que ilumina
A Terra, de forma comedida,
Pois se ele se enfurece, nos fulmina...

Mas permanece sóbrio, majestoso,
Produzindo esse calor quase gostoso
Que em geral permite até o prazer
De viver, amar, e agradecer.

E fico assim pasma da pachorra
De Deus, do sol, com a coma loura
Contemplando eternamente esta piorra

Pois num suave bamboleio e giro, qual
Franguinho na grelha a Terra doura
Girando no espeto por igual.


O Vazio
5
O amor é a origem do calor
Que em tudo põe sua nota de vigor
E aquilo que acaso esteja frio
No universo pertence ao seu vazio.

Mas justamente isso é que me intriga:
O imenso Mistério que restara
De Deus que ao criar a chama clara
Também criou sua inimiga.

A luz e a escuridão, por quê a segunda?
Vazio d’alma, o frio coração
Por quê, meu Deus, a dor tão funda,

O bem, o amor, a luz e sua benção
Não se refletem no vazio sideral
Dessa lacuna então preenchida pelo mal?




Metamorfoses
6
O homem Deus criou, foi propalado,
E dele originou-se a mulher.
Essa seria pois um ser castrado
Como a Escritura ainda quer.

Mas protesto, e prefiro a solução
Do grego que rachou o ser ao meio
Por um golpe de Zeus, que assim veio
Colher um e outro lado, o garanhão.

Pois homem e mulher, o mesmo ser
Foi duplicado pelo deus p’ro seu prazer
Com pequenas diferenças de desenho

Mas ambos com um grato desempenho
Pois se só homens possuem os seus compridos,
Ambos pelo deus são possuídos.


Nightmare
7
Acordo nesta cama em que estou,
Assustada, em plena madrugada,
E logo me dou conta, espantada,
Que um silêncio fundo me acordou.

Nem um latido ao longe, nem um galo
Nem o cri-cri dos grilos que são gratos
Quando anunciam chuva, nem os sapos,
Tampouco o Tempo escoando pelo ralo.

E esse silêncio atroz me desespera
Pois deve ser o mesmo dentro a tampa
Fechada do caixão que nos espera

E corro ao espelho apavorada
Por um segundo antevendo minha campa
Sobre a bela face descorada.




Bucólico

8
Ouço a música divina de Beethoven
Na suave pastoral de um movimento,
Um adágio ou um andante ‘poco lento”
Mas não Como aqueles que só ouvem

Pois participo, eu sei, desse passeio
Com o mestre pelo campo em primavera,
Sentindo em seu olhar, que nada alheio,
O camponês na alma ele tempera.

E tanto bucolismo ideal
Me faz por um segundo perceber
Que a alma pode a esse mundo pertencer

Já que, como veio, ela voltou
À antiga Arcádia ancestral,
Onde a doce Psiqué se originou.



Days of wine and roses

9
Quando presa nos braços como torno,
De um homem, assim contida e apertada,
Às vezes me dou conta do retorno
Ao ser que fui, reintegrada.

E atribuo a isso essa saudade
Essa ânsia de voltar a esses braços
Que me faz parecer criando laços,
Já que amada fui à saciedade.

E então, pergunto aos homens e aos vinhos
O que acontece com as mulheres amorosas
Que parecem agarrar-se como rosas

Quando lançadas assim com seus espinhos
Sobre as roupas ou as peles, pegajosas,
Cobrindo e cobertas de carinhos.




Délire de Grandeur

10
Quando lanço minha alma no papel
Em verso ou em desenho assim gravada
Percebo-a então multiplicada
Correndo para o mundo num tropel

De almas iguais, mas facetadas,
Estilhaços da Alma, contundentes,
Ou em nuvens amorosas, envolventes,
Fragmentos das paixões acalentadas.

E então, no meu delírio belle-époque
Me sonho conhecida do Oiapoque
Ao Chuí, na minha terra assim tão vasta.

E me vejo pequenina em minha estância
Olhando a linha que o olhar arrasta
Pelo pampa, em toda a sua distância.

FIM