A Morte

A Morte
óleo s/tela de Guilherme de Faria 1967

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Metempsicoses (de Alma Welt)

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Nota da editora:

Os números nos versos correspondem a notas explicativas talvez necessárias devido ao caráter pessoal, obscuro ou demasiado erudito a que se referem.

Tive de convencer, com certa dificuldade, a nossa poetisa a aceitar que eu agregasse estas notas explicativas sobre alguns versos deste novo ciclo de sonetos. Alma argumentou que eles eram mesmo para os “iniciados”, e que seu caráter íntimo e até mesmo esotérico, praticamente exigia que se mantivessem restritos a um público mais culto, ou mesmo erudito, como parece ter sido a intenção, por exemplo, de Dante ao escrever a sua “Divina Comédia’. Não havia a intenção de facilitar o entendimento, mas, ao contrário, de ocultar, despistar, nublar, e alimentar o mistério.

Finalmente, Alma concordou que eu juntasse estas notas, talvez supérfluas, para que um público mais amplo possa desfrutar de suas pérolas, e também de seus devaneios. A poetisa tende a acreditar que exegetas do futuro se debruçarão sobre sua obra. Eu também acredito. Mas como editora quero, desde já, que um maior número de seus leitores e fãs aproveitem o seu rico pensamento, que parece transitar entre tantos séculos, como ela insinua nestes sonetos.


METEMPSICOSES

Prólogo

1
Alma sou, em minha viagem tão antiga 1
Pelos corpos de pintoras e pintores,
Poetisas também, ó minha amiga,
Que em Safo conheci os meus amores! 2

Neste ciclo contarei como fui bela 3
E os motivos que tenho pra cantar;
Direi como vim até Florbela 4
E a nossa obsessão de tanto amar.

Depois, como cheguei neste meu Pampa 5
Para, em plenitude, ser só Alma,
“La Welt”, sim, subindo a rampa,

Que nesta “Paulicéia” encontro calma
Para compor meus quadros e meus versos,
Nestes Jardins, afinal tão controversos.



*Notas da editora:

(1) Alma, como muitos artistas, crê na Metempsicose, isto é, a transmigração das almas, no sentido platônico. A necessidade ( Ananke) das almas viverem sucessivas encarnações (dez ciclos de mil anos, segundo Platão e o Orfismo), afim de recuperarem as asas e voltarem ao Empíreo (a morada dos deuses e das almas purificadas).

(2) Alma se inspira em Safo, a grande poetisa lírica da ilha de Lesbos. Tem motivos para crer ser ela uma de suas encarnações.

(3) Alma mantém neste ciclo de sonetos o seu achado único de contar estórias através de de sua seqüência.

(4) Alma crê ter sido também Florbela Espanca, no início do século XX, a grande lírica e amorosa portuguesa, grande mestra do soneto.

(5) “La Welt” - expressão usada por um seu amigo que vê nela, desde já, uma futura celebridade, com sua vocação indisfarçável para diva. “Subindo a rampa” : subindo para o planalto de São Paulo, ou para um estágio superior em sua carreira de artista.


Transmigrações I

2
Com Renina exercitei-me no anagrama
Para enfim encontrar o De Faria, 6
O pintor que mostrou quanto me ama
Retirando meu navio da calmaria.

E agora, calma, plena, amando Buda,
Posso passar a limpo o meu destino
Contado a partir da monja Guda 7
(mulher de pincelzinho muito fino),

Como transmigrei por belas vidas
Escolhendo primeiro as artesãs
Que transcenderam, para além dos seus afãs

E muito amaram sem deixar as suas lidas
De poetas e pintoras aguerridas,
Que agora colhem louros, novos fãs.8


Notas:
(6) De Faria (Guilherme de Faria), o artista plástico e poeta de cordel que descobriu Alma, lançou-a e que a prefacia, sendo também seu maior amigo em São Paulo. “... retirando meu navio da calmaria”- Guilherme descobriu Alma muito quieta em seu ateliê paulista, e atirou-a numa roda-viva ao descobrir sua obra literária inédita.

(7) A poetisa cita aqui a sua encarnação do ano 950, Guda, Monja que assina (em latim), pela primeira vez, um códice, obra prima de iluminuras pintadas por ela.

(8) Tendo sido relacionadas, finalmente, por pesquisadoras feministas, no séculoXX , um rol de grandes mulheres artistas renasce para a fama, conquistando fãs, a partir de data recente. Algumas já se tornam “cults”, como Florbela Espanca (séc. XX), e Artemísia Gentileschi (séc. XVII).



Transmigrações II


3
No “Claris mulieribus” já constava 9
E Boccacio revelou minha passagem;
No quatorze, portanto, já pintava,
E o poeta poupou-me sacanagem.

Sofonisba fui no dezesseis 10
E a angústia da Anguissola experimentei
Mas no “Jogo de xadrez” realizei
A obra que afinal reconheceis.

Como Artemísia, Agostino me estuprou 11
E sua calúnia em parte procedia,
Todavia fui eu quem prosperou.

A Sirani, minha serva a envenenou, 12
Não antes que pintasse imensa obra,
Aos vinte e sete, que em Alma ainda cobra.


Notas:
(9) “Claris mulieribus”, obra de Giovanni Boccacio, que recolhe 104 biografias de mulheres e que destaca um grupo de pintoras.“... o poeta poupou-me sacanagem) – Alma parece querer dizer que uma encarnação sua está entre estas biografias, que se distanciam do caráter malicioso da abordagem das mulher na obra mais famosa de Boccacio, o “Decameron”, recheada de divertidas passagens pornográficas.

(10) Sofonisba Anguissola (1528 –1628), grande pintora do Renascimento, que ficou cega aos sessenta anos, e que foi mestra de Van Eyk ( segundo depoimento deste). Sua obra “Jogo de Xadrez”, que representa um grupo de mulheres jogando, foi considerada uma obra-prima do gênero, naquela época.

(11) Artemísia Gentileschi ( 1593-1652), revela um “pathos”em sua obra,toda ela tematicamente comprometida com temas sanguinários, de personagens masculinos sendo mortos por mulheres heroínas (Judith e Holofernes) depois de terem sido estupradas, ou mulheres acuadas por homens (Susana e os velhos). Tais temas parecem exercer uma função catártica na vida de Artemísia, que foi ela própria violentada aos dezessete anos por um condiscípulo (Agostino Tassi) de seu pai Orazio Gentileschi, e que ainda caluniou a estes, em juizo, atribuindo-lhes uma relação incestuosa entre pai e filha. Artemísia foi torturada na inquirição do processo.

(12) Elisabetta Sirani (1638-1665), grande pintora e gravadora do século XVII , que fundou uma escola para pintoras, em Bolonha, e que parece ter sido envenenada por uma criada, morrendo aos vinte e sete anos, mas deixando imensa obra. Alma sugere que esta encarnação cobra a ela que pinte muito, igualmente.



Transmigrações III

4
Antes da Anguissola, Bianca fui, 13
Capello, com a fama de fatal,
Que minha inocência não polui,
Mas ainda me confunde como tal.

Mas foi no dezenove que revi
Essa minha natureza em plenitude,
Transformando essa pecha em virtude,
Talento e beleza da D’Affry 14

Que me foi revelada no Foyer
Quando defrontei-me com a “Pythie”
Como algo que afinal reconheci.

E pude então amar o Jean-Baptiste 16
Como já o fizera no ateliê,
Tornando-o feliz... e logo triste.


Notas:
(13) Bianca Capello, “femme-fatale” veneziana, do século XVI, casou-se com Francesco de Médici, mas tinha sido suspeita de envenenar o primeiro marido.

(14) Adèle D’Affry, duquesa Castiglione-Colonna (1836-1879), a maior escultora do século XIX, além de pintora e desenhista. Considerava-se uma encarnação de Bianca Capello. Assinava “Marcello”, pseudônimo masculino para não ser discriminada no Salon de Paris. Sua “Pithie” (em francês pronuncia-se Pissí, daí a rima no soneto da Alma) é sua obra-prima, uma espécie de auto-retrato mítico, que ostenta serpentes nos cabelos, como a Medusa, e que tem significado obscuro, mas decifrado pela própria Alma na sua novela “Perséfone”, onde ela revela como descobriu esta sua encarnação passada. Novela notável, e misteriosa, ainda inédita.

(15) A obra “Pithie”, assinada “Marcello”, encontra-se num nicho do Grand Foyer do Opéra de Paris, adquirida por Jules Garnier (arquiteto do Opéra), no Salon de 1870, para ser colocada ali. Alma conta em sua novela “Perséfone” como defrontou-se pela primeira vez com a escultura neste saguão por ocasião da estréia de uma montagem da ópera Carmen, descobrindo a sua relação com a a grande escultora da belle-époque.

(16) Jean-Baptiste - Aqui Alma se refere ao personagem de sua novela Perséfone, que seria, por sua vez, uma reencarnação de Jean-Baptiste Carpeaux, (1827-1875) o grande escultor francês, que foi amigo de Adèle, e que presumivelmente a amou.



Musas

5
Aline, alma minha, outras urdem 17
Teu destino atual, aquelas musas:
Hébuterne, Siddal, Jane Burden,
Devo em ti encontrá-las, pois, difusas.

Amadas dos pintores, sois maiores,
Eternisadas em beleza pelas tintas
Que não morrem, como morrem os amores
E as belas carnes que a natureza pinta.

Pintei-te, bela e nua, ao meu lado, 18
Assim eternizando a juventude,
Duplo retrato nosso foi plasmado!

E ainda confundi nossos metiês, 19
A paleta no meio, como vês,
Para enfatizar a completude...


Notas:

(17) Alma insinua com este verso, que Aline também é reencarnação de várias musas de pintores, como as citadas Jeanne Hébuterne (mulher de Modigliani), Elisabeth Siddal modelo e esposa do pintor e poeta “pré-rafaelita” (escola pictórica inglesa do séc. XIX) Dante Gabriel Rossetti, que continuou a cantá-la em verso e pintura depois de sua morte prematura, por toda a sua vida; e finalmente Jane Burden, nome de solteira de Jane Morris, que, modelo do pintor também pré-rafaelita inglês William Morris, continuou seu modelo depois de casada com ele, e cujo rosto é o de todos os personagens femininos de sua pintura.

(18) Neste verso, Alma se refere à pintura por ela feita, um duplo retrato dela e Aline nuas ladeando um cavalete com uma tela que reproduz a mesma cena, com insinuação do espelhamento infinito. O quadro original não existe mais, pois foi destruído, num acesso de ciúme por Pedro, ex-namorado de Aline. No entanto, pela descrição da obra feita por Alma ao pintor Guilherme de Faria, este reproduziu-a conforme sua imaginação, produzindo uma tela de 100x100cm que foi premiada numa exposição no MUBE, em São Paulo em 2003. A obra de Guilherme e Welt está reproduzida na capa do CD “Sonetos da Alma”, gravado pelo pintor co acompanhamentos de piano e orquestra, dos grandes românticos como Chopin, Liszt, Shumann, Shubert, etc.

(19) Na pintura mencionada, o duplo retrato de Alma e Aline descrito no soneto 12 do ciclo “Sonetos da Alma”, gravado em CD com leitura de Guilherme de Faria, a paleta colorida de Alma está no chão , no centro, aos pés do cavalete,ladeado pelas duas moças em nu frontal, produzindo uma ambigüidade e a pergunta:‘‘...qual a pintora?”


Saga
6
Voltei, reconciliei-me com a estância 20
Onde sei que enfim renascerei,
Aqui, onde amei Rodo em minha infância
Sob a égide do Vati, que era o rei.

Para aqui trouxe Aline, minha amada,
Encontrando afinal a perfeição
Depois das agruras da jornada
Que encerrou-me, uma noite, na prisão 21

Tinha encontrado a safra inesperada, 22
Perdi-a, encontrei novo tesouro,
Salvei a terra, o jardim e a morada.

Que mais viver, o que esperar, ó minha vida?
A cada dia, a passagem enriquecida...
Como mais amar, ó coração?


Notas:

(20) Essa volta é o começo do romance autobiográfico A Herança, de Alma Welt.

(21) Na segunda parte do romance A Herança, denominada “A Ara dos Pampas”, consta uma cena onde Alma, indiciada, passa uma noite na cadeia, antes de começar o processo.

(22) No romance, Alma conta como encontrou uma safra de dez mil garrafas de um vinho de quarenta anos, deixada pelo seus avós como a herança material que salvará a estância de suas dívidas acumuladas.



Doação

7
Dou a luz poemas e pinturas,
Aline, perdoa-me, queres mais:
Um filho, eu sei ( ó criaturas,
eu as vejo e sei o quanto amais!) 23

Vejo o teu, o nosso filho, como é lindo!
Por isso resolvi estar dormindo 24
Enquanto colhas a semente noutra parte,
Para, com o nosso amor, engravidar-te.

E então ver o teu ventre assim crescendo,
Com a minha ternura e o meu desvelo,
A trama do Destino entretecendo

De uma nova guirlanda, “more and more”
Esperando, ansiando já, por vê-lo,
Sabendo o coração ainda maior.



Notas:
(23) Alma, como artista, parece ter um certo afastamento contemplativo, mas reconhece e até compartilha a necessidade que vê em Aline de ter um filho, e antecipa esse olhar sobre a cena maternal, nesse curioso verso.

(24) A artista sugere aqui algo espantoso: Aline teria se deitado com Rôdo, irmão de Alma, com ela presente no mesmo quarto (no mesmo leito?), enquanto Alma fingia dormir, para que Aline pudesse conceber uma criança, que elas criarão juntas.


Celta

8
E eis que narrei a minha saga
Nesta passagem pelo vinte e vinte e um 25
Nada fiquei devendo àquela maga
Que fui, chamada Deirdre, não Gudrun, 26

E que, druidisa, já queimava
As ervas ainda úmidas de orvalhos,
E que colher o visgo dos carvalhos
A plena permissão muito me honrava. 27

Nesta minha atual vivência em corpo
O tive invadido, torturado
Por duas vezes, entre amores, violado. 28

E ainda sou vestal da minha alma
Pura, em meu desejo desfrutado,
Nutrindo o coração, que não se acalma.



Notas:
25)Alma vê a sua vida, com razão, como uma saga nesta sua “passagem” pelo final do século XX e começo do XXI. Mas suas reminicências de outras vidas remetem-na, nestes versos, a uma misteriosa druidisa, Deirdre.

(26) Deirdre, quer dizer “filha da Irlanda”, em língua gaélica. Não pudemos conferir a existência real de tal personagem, mas as palavras “...e não Gudrun”, parecem confirmar a surpresa da própria Alma em não se tratar de uma donzela germânica, mas celta.

(27) Este verso sugere que as druidisas eram raras, talvez excepcionais, e que necessitavam de permissão especial do Conselho dos Druidas (quase sempre anciãos), para colher o visgo, “com a foice de ouro”.

(28) Este “salto” no tempo, que Alma realiza nestes versos, mencionando dois momentos de violência que sofreu nesta sua atual encarnação, querem reforçar a convicção de sua pureza anímica, que a confirma nessa persistente natureza de sacerdotisa (vestal), pítia ou pitonisa em outros momentos.


Profissão de fé

9
Amores meus, mananciais da minha vida,
Afluentes de um rio imponderável,
Vinde todos a mim, deixai a lida
Por momentos, e tomai-me, insaciável.

Como é belo viver assim tomada,
Possuída, cantando Arte e Amor!
Não me venham, pois, com a maçada
Dos trabalhos e os dias, e o rancor. 29

Não me falem de metas e carreiras,
Dos vulgares conceitos deste século,
Da social questão, e das barreiras!

Que tenho eu, Alma, com esse mundo
Que vejo tão somente pelo espéculo 30
De um olhar de artista, mais profundo?



Notas:
(29) “... Os trabalhos e os dias”, esta expressão nos remete ao título da famosa obra poética de Hesíodo, mas a palavra “maçada” (aborrecimento) anterior, e “rancor” (em seguida), muda-lhe o sentido, sugerindo a idéia de tédio, do cotidiano.

(30) A palavra “espéculo”, aqui (além de rimar com “século”), pela primeira vez no vocabulário da Alma, é particularmente interessante por derivar de um aparelho médico de exame das partes íntimas, que o seu pai , o cirurgião Dr. Werner, tinha em casa, e que causava impressão na menina Alma, ao mesmo tempo que de grande riqueza etimológica, nos remete a “speculum” ( espelho) e também à sua derivada “especulação”.


Epílogo

10
Fechem-se as cortinas, por enquanto, 31
Caia o pano, pelo menos neste ato
Saio de cena, o rosto sob um manto,
Na coxia aguardando o entreato.

É quando percebo o improviso 32
De minha vida, sem roteiro, sem destino:
Vou construindo a peça em meio ao riso
E os aplausos de um público ladino 33

Que comovido, vislumbra nesta atriz
A marca da Bernhardt, ou Plissetskaya, 34
Pela ardência da paixão, e pede bis,

E volto, então, ao palco, deslumbrada
Pelas palmas, malgrado a pateada
Dos tolos... que preferem tola vaia. 35

FIM


Notas:
(31) Alma quer interromper o fluxo constante de suas experiências espirituais, como para um balanço, que ela compara a um entreato ou intermezzo musical.

(32) Alma pondera que o “destino” é construído constantemente numa espécie de perpétuo improviso, não estando portanto pré-escrito, o que coincide com o conceito do “livre arbítrio” , que confere valor individual às vidas.

(33) Alma , com ingênua astúcia, bem feminina lisongeia o publico que a aplaude, chamando-o de “ladino” (esperto), por saber apreciá-la...

(34) Alma sonha com um público culto, que a compara à célebre atriz Sarah Bernhardt (1844-1923), e com a grande bailarina russa Maya Plissetskaya, que, ela própria bailarina (vide o conto Pas-de deux,, dos “Contos da Alma”), considera uma deusa .

(35)Alma, como boa artista, descarta os possíveis opositores de sua arte, como tolos. Mas faz isso com candura e humor, como é de sua índole.

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quarta-feira, 31 de outubro de 2007

SONETOS ALEGÓRICOS DA ALMA (de Alma Welt)

Alma Welt

Sonetos Alegóricos da Alma

Índice

1. Amor vinha montado...
2. Num bosque encantado...
3. Vinha descendo o rio...
4. A Vida, meu amor...
5. Hoje acordei de um sonho...
6. Longe ouço o pássaro...
7. Numa floresta gótica...
8. Escutando Chopin...
9. Sonhei que voava...
10. A torre de aço...


Amor vinha montado
1
Amor vinha montado, em disparada
Como um rei ou cavaleiro muito antigo,
Daqueles velhos cantares de amigo
E sua trompa de caça era dourada.

Sete galgos latiam e acompanhavam
Sete pagens também sete escudeiros
Traziam estandartes e cantavam
Baladas de caça e de guerreiros.

Assim vi dentro de mim Amor chegando,
Tendas, cortesãos e saltimbancos
Em minh’alma amor transfigurando

Sua corte,seus exércitos em meus flancos,
Rendida, enfim aprisionada,
Em torre de marfim seria amada...




Num bosque encantado

2
Num bosque encantado me encontrei
Cujo ar carregado de corpúsculos
De pólen coruscante, reparei
À contra-luz em seus belos crepúsculos.

Grandes sombras de carvalho, alcatifadas
De musgos e de líquens como rendas
Semeadas de fungos, assombradas
Por pequenos seres de outras lendas.

E percebo-me, então, naquele mundo
Da alma, de imagens delirantes,
Feéricas, do sonho mais profundo

Reservado a nós, que preservados
Sabemos manter-nos antenados
Na beleza, da qual somos amantes.


Vinha descendo o rio...
3
Vinha descendo o rio lentamente
O barco festivo embandeirado,
Na proa uma sereia iridescente,
O seio nu e o olhar esgazeado.

Como estandarte a vela, e enfunado
Ostentava o signo do Amor,
Mas não aquele coração varado
Pela flecha, o balão de rubra cor.

Galgo-fêmea e raposa, mas eretas
Comandavam na proa esse batel:
O galgo, de casaca em linhas retas

E dei-me conta do delírio do soneto
(não sendo o primeiro que cometo)
Eu, que assim sonhava no papel...


A vida, meu amor
4
A vida, meu amor, me quer assim:
Amando, desejando, apaixonada.
Quanto mais intensa a minha estada
Mais louros e repouso no meu fim.

Renina, eu sei, já me alertou
Para esse furor que viu em mim.
Uterino, ela disse, e me chocou...
Eu que para o amor à Terra vim!

Sou Alma, o meu nome já diz tudo
E pertenço à estirpe de Florbela.
Amando o amor e crendo a vida bela

Refaço em meu destino, que assim mudo,
O percurso das grandes amorosas,
Rubras nos seus leitos, como rosas.



Hoje acordei de um sonho...
5
Hoje acordei de um sonho lindo
Chorando de saudade desse sonho
Que me levara ao lugar risonho
De onde lentamente venho vindo:

Um pomar, a terra alcatifada
De flores, margaridas e jasmim,
A macieira minha, já gravada,
Anotada de todos os meus “sim”

Em torno ao casarão avarandado
Eu revi o pampa sem fronteira
Onde tive o sonho começado

E me votei um dia consciente,
À Arte, como ao Cristo faz a freira,
E ao Amor, em seu leito muito quente.



Longe ouço o pássaro...
6
Longe ouço o pássaro cantor
Que parece ser um sabiá
E eu me pergunto o que faz o amor
Deslocado aqui na terra má?

Barulho e correria comezinha
Tão distante daquela terra minha
Onde ouço do mate suas canções
Enquanto vinho dorme nos porões.

Mas toca o interfone no momento
E mando subir o comprador
De quadros, hesitante, muito lento,

Que percebo deseja alongar
Sua estada aqui neste lugar
Onde parece farejar o amor.


Numa floresta gótica...
7
Numa floresta gótica me vi
Perdida caminhando sob os arcos
Formados pelos ramos arqueados
Onde não cantava o bem-te-vi

Mas sim o cuco enervante, renitente
Ressaltando pelo oposto o silencioso
E pesado imobilismo penumbroso
Que faria este cenário comovente.

E então me perguntei quase nervosa
A razão da interferência de um barulho
Nessa imagem solene, majestosa.

E a alma em mim, de que me orgulho,
Pôs o dedo no meu lábio, carinhosa
Fazendo rrrrr....rrrr... como um arrulho.


Escutando Chopin..
8
Escutando Chopin vindo do lado
Reclino-me dolente no meu leito
E ponho-me num sonho acalentado
O piano ressoando no meu peito.

E vejo-me, a mim, vestido longo,
De pé ao lado do Steinway
Negro, negro como um rei do Congo
Ou como o rolls-royce desse rei.

E me pergunto então porquê a imagem
De negritude assim associada
Ao claro Chopin e sua balada?

E a alma respondeu: “o ser romântico
À noite pertence e à passagem
Da lua no céu, seu triste cântico.”


Sonhei que voava...

9
Sonhei que voava para a lua
Meus longos cabelos pelos ares...
Olhei-me em seu espelho e estava nua
Quis voltar e encontrei seus patamares.

Degraus da lua, sim, eu bem sabia
Que essa escada secreta existia
Para aqueles impedidos de voar
Ou quem se vendo nu, tem de voltar.

E então recomecei a escalada,
Agora tímida, talvez envergonhada,
Meus cabelos a cobrir-me qual Godiva

No passeio sob a lua, preservada,
Sem cavalo e sem nenhuma comitiva,
Minha noturna nudez iluminada.


A torre de aço
10
A torre de aço e vidro pós-moderna
Pairando sobre nuvens seu mirante
Aparece no meu sonho delirante
Como torre de Babel que fosse eterna,

Pois no alto da antena ou pára-raio
Eu vejo o estandarte da soberba
Tremulando sobre a alma num desmaio
De vertigem, na subida tão acerba.

E então eu questiono isto ser
Da humana condição tão orgulhosa
Da qual eu participo sem querer.

Sou Alma, eu vim de Psiquê
Sou antiga como o mundo e tão vaidosa,
E ingênua também, como se vê...

FIM

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Sobre a poesia dos minutos (de Alma Welt)

(84)

Observo as abelhas em seu vôo
E penso que descubro o seu segredo:
A concentração no eterno enredo
É a chave do sucesso do seu povo.

A rotina é talvez poesia pura
Ou é ela mesma o seu sentido
Pois ela não exclui a aventura
Que põe todo plano dissolvido.

E me ponho a cogitar se fico quieta
Imóvel no meu canto e encantada
Não me torno a essência do poeta,

Pois não há maior mistério e poesia
Que a senda dos minutos, tão pingada
Traçando a perigosa travessia.

04/01/2007

domingo, 7 de outubro de 2007

Soneto Pedante (de Alma Welt)

(37)

Como disse Calderón a vida é sonho,
Continuo inclinada a acreditar...
Tudo é miragem para nos mesmerizar
Como o fazia Mesmer, doutor bisonho.

Na verdade o ser humano só foi feito
Da onírica matéria de Miranda
Que em meio à tempestade ainda desanda
A fazer ressoar frases de efeito

Pois saudou o admirável mundo novo
Que o Aldous captou entre os ateus
Projetando melhorar o pobre povo

Mas sonhar com a Natureza ainda prefiro,
Como Jâmblico, discípulo de Porfírio,
O sonho que ela tem do próprio Deus...


19/12/2006


Notas do editor

(Pelo título auto-crítico percebe-se que Alma quis ressaltar o caráter humorístico desse seu curioso soneto.)

*Calderón-- O grande escritor barroco espanhol Pedro Calderón de La Barca
, que escreveu a notável comédia “La vida és sueño.

*Mesmer- Franz Mesmer, médico alemão( 1735-1815) fundador da teoria do magnetismo animal, precursora da prática sistematizada do hipnotismo.

*...matéria onírica de Miranda- Alma se refere a personagem da peça A Tempestade, de William Shakespeare, a linda e quase encantada filha de Próspero, duque destronado de Milão. Shakeaspeare colocou na boca deste, na peça a célebre frase: “Somos feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos”. Quanto a Miranda , esta pronuncia a “frase de efeito” a que Alma se refere ao final da peça, a famosa “O brave new world...”( ó admirável mundo novo...), que Aldous Huxley citou como titulo de sua obra profética “Brave New World”( no Brasil, O Admirável Mundo Novo ), em que prevê um duvidoso e controvertido planejamento genético como meio de aperfeiçoar a raça humana.

Jamblico – Alma se refere ao pouquíssimo conhecido filósofo Jamblico de Caldéia, da época do imperador romano Juliano, o Apóstata, do segundo século do cristianismo. Jamblico era discípulo de Porfírio, o neo-platônico, que por sua vez era discípulo de Plotino. Alma se refere a um maravilhoso texto de Dmitri Merejkowski em que este coloca na boca de Jamblico (diante do imperador que o procurou) um monólogo mais poético, na verdade, do que filosófico, sobre a Natureza que sonha com Deus, perpetuamente. Alma considerava este o mais belo texto que ela jamais leu.
(Lucia Welt)

A zona do coração (de Alma Welt)

(106)

Entre sombra e luz cai o vazio
Que é da visão e sonho o limiar,
E essa zona ambígua em tom macio
Guarda o coração em seu amar,

Posto qu'ele mesmo não é bem claro
Conquanto igualmente não escuro,
Quer o esclarecido e o obscuro
Assim como o profuso ama o raro.

Mas mesmo tão chegado a submundos
O amor mal se perde em emoções
Outras que a da luz que a ele impões,

Ó coração obstinado e incoerente
Que tens a natureza da semente
A brotar na fronteira de dois mundos!

10/01/2007

Soneto antigo (de Alma Welt

(50)

O que pode um coração já impotente
Quando tudo já foi dito e feito,
E as palavras vagam no teu peito
Como as sombras de um luar ausente?

Esgotaste a quota de argumentos
E de súplicas servis ao contendor,
Esvaíste a ração de sofrimentos
E agora não tens senão rancor.

E olhas então no teu espelho
E vês que tudo estava em tua mente
E o outro nem existe, simplesmente,

Pois foi contigo mesmo que lutaste
E nada podes contra o deus-escaravelho*
Do deserto que em teu peito semeaste.

22/12/2006

Notas da editora:

*deus-escaravelho- provavelmente o símbolo do sol
dos egípcios dos tempos dos faraós, ao mesmo tempo um
símbolo do “eterno retorno”, pois os escaravelhos
do deserto rolam com as pernas traseiras uma bola
de esterco, como uma esfera ou círculo perpétuo.
Este é um dos mais enigmáticos sonetos da Alma
e esta imagem arcaica sugere a sua conotação metafísica.
A rigor, não deveria estar nos "Sonetos Pampianos",
mas entre os "Sonetos Metafísicos da Alma". (Lucia Welt)

A Magia do Olhar (de Alma Welt)

(9)

Quando vier o inverno desta vida
Eu terei muita coisa pra contar,
Mas se estiver ainda convencida,
Como estou, de ser de mim meu avatar.

Em verdade venho, sim, assim contando
Dia por dia a saga de viver,
O meu olhar atento decifrando
Os signos das coisas e do ser.

Como não podem ver alguns amados
Que a vida é magia e ritual
E todos os minutos são sagrados?

Então devo prostrar-me agradecendo
A beleza de tudo o que é igual
Mas sempre nova face oferecendo...

11/12/2006

A saga do corpo e coração ( de Alma Welt

(130)

A razão de ser é mesmo amar.
O resto é só pra manter vivo
O corpo em sua agonia milenar
E nele a alma e o coração cativo.

Esta carne luta pra fundir-se
Tanto quanto a alma em sua ânsia
De com outra alma confundir-se
Malgrado a permanência ou constância

E nesta aflita busca da metade
Procurando o membro amputado
Que era parte de nós, dissociado,

Que vaga por aí nesse deserto
Mas que porventura anda tão perto
Perdido em sua própria tempestade...

17/01/2007

O som da fruta (de Alma Welt)

(109)

Tem dias em que ando meio a esmo
Nos locais preferidos desta estância
Procurando o sentido, aquele mesmo,
Que neles encontrava na infância.

Mas percebo que a concentração
Como modo de estarmos num local,
É o contrário da perfeita integração
Que nos fazia ser o ser total

Que éramos naqueles tais instantes
Como a sombra fugidia de uma truta
Nas águas, com rumores circundantes

Do surdo crescimento de uma fruta,
E a vida um encontro tão fecundo
Em que olhávamos a flôr, e era o mundo!

11/01/2007

NIHIL, ou Velho Tema (de Alma Welt)

(75)

Quando penso que o meu melhor poema
Será aquele que nunca escreverei,
E que, entre mil, o melhor tema
Não terá sido nenhum que celebrei;

Quando percebo que tudo é aventura
E a vida não é mais que puro jogo
De dados lançados à ventura
E cercado pelo blefe e pelo logro,

Eu sei que construí em chão de areia
E recheei de hóspedes bisonhos
A mansão que eu queria sempre cheia.

E que no fim de uma vida de trabalho
Verei ruir como um castelo de baralho
Toda a arquitetura dos meus sonhos...

02/01/2007

O passatempo das horas (de Alma Welt)

(97)

Para escapar às tentações do tédio
Não aceito nenhum jogo de baralho,
Nenhum de tabuleiro ou o borralho
Dos sentimentos e do raciocínio médio.

Em matéria de cartas só respeito
As da cigana com seu pacto astral
Ou aquelas que exigem muito peito
Como as do Rôdo em seu pôquer marginal.

Mas servil, vejo o passar das horas
Como um mordomo que exige as atenções
A elas porque são grandes senhoras

Que preferem o soprano da poesia
Que lhes é apresentada nos salões
Onde o próprio Tempo se enfastia.

05/01/2007

A noite escura da Alma (de Alma Welt

(126)
"La noche escura del alma” (San Juan de la Cruz)

de Alma Welt:

Noite, noite escura desta Alma
Solidão, angústia e mil tormentos,
A corredeira da memória e pensamentos,
Sem remanso ou praia, não se acalma.

Insônia, inferno dos remorsos
A remoer a consciência despertada,
Ranger de dentes, inúteis, vãos esforços
Para conter a dor desta jornada.

Onde o estuário dos amores, sua foz,
Seus momentos aprazíveis de langor?
Onde as palmeiras do enganoso amor?

Agarrada nessa tal casca de noz
Que me coube no universo porventura,
Náufraga sou na triste noite escura...

17/01/2007

Poesia, essência da alma (de Alma Welt )

(132)

Inteligência unida a uma virtude
É a fórmula ideal de um bem-viver,
E mais, a de uma bela completude
Para um bom poeta ver nascer.

Há quem ache que a Poesia é coisa vã
Ou matéria periférica e específica
De um gosto ou de tendência à metafísica
E que é melhor evitá-la gente sã.

Mas não vêem ou não sabem esses incultos
Que ela é a própria dádiva do ser,
Até daqueles seres mais estultos?

Não há como fugirmos dessa Musa,
Ela está em tudo, ela é difusa
E sua essência é o contrário do morrer.

19/01/2007

Percepção (de Alma Welt)

(209)

Tem dias em que vejo claramente
O quanto necessito de alegria.
Estou só, sou bela mas carente,
E o mundo já disso desconfia.

Não há soluções para o viver
E a tragédia me espera, universal.
Quero viver, gritar pra não morrer,
O que posso escolher como um final?

De tanto acreditar que estava quite
Com o amor, sonhando o dia-a-dia,
Perdi a fé e noção do meu limite.

E por tecer grinalda em minha mente
Ao registrar o olhar pela poesia,
Tornei-me Ofélia de um cantar demente...

17/01/2007

Nota da editora:

Um soneto como esse, que acabo de encontrar no "caderno secreto" da Alma, se o tivesse descoberto a mais tempo me teria induzido a acreditar no suicídio da minha irmã cuja morte ocorreu dois dias depois de tê-lo escrito. Mas como foi recentemente solucionado de maneira nada consoladora o enígma de sua morte, tendo sido comprovado o seu assassinato, posso somente atribuir a um momento de desencanto existencial ou à angústia premonitiva de minha irmã, pois ela pressentia sua morte eminente e trágica, como seus últimos sonetos o sugerem. (Lúcia Welt)

O trem (de Alma Welt)

193)

Quando aqui chegava o nosso trem
Na pequena estação perto da estância
Era uma festa enorme para alguém
Que amava os signos da infância.

Os ruidos, silvos e a fumaça,
O vapor envolvendo qual neblina
O vulto espectral de uma menina
Muito branca atrás de uma vidraça...

Era eu que olhava e que me via
Como sempre em tudo em minha vida
Narradora e personagem escolhida

E que esperava a mim na plataforma
Para abraçar-me em meio a algaravia
Daquela multidão quase sem forma.

17/11/2006

No Labirinto da Frida (de Alma Welt)

(151)

No jardim da minha avó, um labirinto
Foi plantado por ela, eu o sinto,
Embora há quem o diga mais antigo
E que nisso consiste o seu perigo.

No seu centro toda imagem desvanece
Ou talvez encontre o Minotauro,
Pois parado ali o tempo permanece
Sem passado, sem futuro, sem restauro.

Conquanto fui guria até segura
Sempre passei-lhe ao largo com respeito
Pois prezo demais a minha figura.

Creio, no jardim da velha Frida
Mora o segredo, a causa e o efeito
Do amor e da poesia em minha vida...


05/12/2006

Antípodas (de Alma Welt)

(164)

Juventude, o quanto hei de querer-te
Por uma vida inteira de memórias,
Mas eu pensar em ti já como estórias
É sinal de que logo vou perder-te!

Transformei cada minuto em puro verso
E em crônica o corriqueiro lance,
Um outro em episódio controverso,
E a breve temporada num romance.

Eis o que tem sido o bem e o mal:
Viver a vida sem sair deste local
E conhecer os polos mais extremos

Vivendo entre a estróina e a asceta,
Ser tanto sibarita quão profeta,
A gulosa e o cadáver que seremos...

17/11/2006

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

O Pampa de Alma Welt (pintura de Guilherme de Faria)


O Pampa de Alma Welt- óleo s/tela de Guilherme de Faria, de 30x40cm (na folha de papel pendurada no galho do toco, o artista transcreveu de maneira microscópica um trecho do poema Pampa, da poetisa gaúcha, somente possível de ler com lente conta-fio.

sábado, 22 de setembro de 2007

Penélope (de Alma Welt)

Para enfrentar a morte escrevo,
Que é o único combate com o ogro
Que posso travar com algum enlevo
E que não redundará em vil malogro.

Pois sabemos que a letra permanece
Como uma fantástica lanterna
Que ilumina a trama que se tece
No silencioso tear da noite eterna

Produzindo uma teia inacabada
Como aquela da viúva inconformada
Que sabia dar ao tempo a sua medida,

E no final, no pouco que restara
Do painel da batalha desmedida
A sua própria saga ela plasmara.

29/12/2006

Sonetos Metafísicos da Alma (de Alma Welt)


A invocação mágica de Alma Welt" - óleo s/ tela de Guilherme de
Faria, de 150x150cm, coleção particular, São Paulo



SONETOS METAFÍSICOS DA ALMA
(Alma Welt)

1
Deste canto solitário do meu quarto
Avisto a minha vida projetada
Na parede branca, como o parto
Que me lançou na luz, tão deslumbrada.

Alguém me diz que somos para a morte,
Mas não posso isso aceitar tão facilmente,
O que prova que sou jovem, tão somente,
E insisto que aquilo é só um corte,

Ruptura, estrago, ou acidente...
E a vejo como falha, a cada dia,
Uma vez que a vida dela se ressente,

Pois é visível o susto e a rebeldia
No animal que somos, quando em frente
A essa quimera, que o instinto desafia!


2
Na viagem de minha vida solitária
Tenho todo o tempo pra sonhar,
Mas sento-me à janela, que, contrária,
Busca distrair o meu olhar.

Assim vejo a mim mesma contra o fundo
De um cenário mutável e veloz
Que é o retrato dinâmico do mundo
Transformado em filme como nós

Que custamos a entender as tramas várias,
Confundidos com o nosso personagem
Em tomadas assim fragmentárias

Que é preciso editar para entender
O sentido linear e a mensagem
Que somente o Diretor logra saber...


3
Sob a luz que cai sobre esta mesa
Coloco minhas mãos solenemente
E olho longamente a forma tesa
Dos dedos estendidos tensamente

Mas logo descontraio os mesmos dedos
E deixo-os pousados, assim quedos,
Como folhas caídas no poente
De um outono doce, evanescente.

E percebo os dois tonos desta vida
Que, grave, submeto ao meu tino,
Como fui por mim mesma escolhida,

Lançada sobre a mesa como um dado
Da vida, sob o fuso do Destino,
Mas livre para a escolha do meu fado.


4
Outrora caminhei sobre um jardim
De flores densamente alcatifado,
Em que cores e perfumes, para mim,
Eram meu próprio corpo projetado.

Pois criança, estendia meus limites,
Já que as doces coisas tão queridas
Me cercavam lançando seus convites
Confundindo-me à suas próprias vidas.

Crescer foi um processo, para mim,
Doloroso, do cortar de mil gavinhas
Como orquídea transplantada de xaxim.

E me vejo exilada do jardim
Qual de um mágico buquê dessas florinhas,
Como ervas são podadas, por daninhas.


5
Volto ao pomar da minha infância
Lembrada qual se fosse a Grande Era,
Comovida com os ecos à distância
Que a própria memória reverbera.

Caminho ao redor da macieira
Como outrora, com a mesma sensação
De ouvir mais claro o sopro e o coração,
Junto às raízes em que estou inteira.

E confiro junto ao tronco e suas folhas,
Do meu destino o preço e a missão,
Pedindo só ao Tempo: “Não me tolhas,”

“Me deixa completar a minha sina
Seguindo do meu ser a inclinação
Como a semente ao fruto se destina!”


6
Aproximo-me da tela ainda vazia
Com vago temor, mas instigada:
Um impulso poderoso principia
E permite a primeira pincelada.

Qual pulsão rompe a inércia num momento?
Seria talvez este o pensamento
Se tal ato fosse fruto da razão.
Mas longe, seguindo o coração,

Que não cogita e baila entre as cores
Numa dança fantástica, febril,
Sentindo até, das tintas, os sabores,

Percebo quão grande privilégio
É persistir nesta vivência pueril
Que rege meu destino em sortilégio...


7
Sob o cone de luz, que me deslumbra,
Cercada do bailar dos filamentos,
Dissipo no Tempo meus momentos
E sinto a alma sair de sua penumbra.

E vejo-me a mim, melhor, me sinto
Neste turbilhão tão silencioso
Cintilante, como em tela às vezes pinto
O espaço ideal, com tanto gozo.

E é claro, para mim, esse sentido
Do surgir, e após o brilho pressentido
Mergulhar no Nada, novamente,

Numa eterna dança coruscante,
Que consola meu corpo e minha mente
Com ser eterna, e bela, num instante.


8
Quando chegar o meu momento
Quero olhar a vida num relance
E vê-la inteira, sem tormento,
Polida, completa, ao meu alcance

Como em mármore, escultura acabada,
Obra-prima que por ser assim perfeita
Merece a atenção, que nela deita,
E repousa na beleza, apaziguada.

Pois que Vida e arte, uma só
Visão, tarefa, obra, sai da alma
E dura como se não fosse pó.

Assim ludibriamos nossa morte
E sentimos como a vida então se acalma
Por um tempo bem maior que a nossa sorte.


9
Se penso nos amores que vivi
E o quanto dissipei-me nesta vida,
Percebo que nada então perdi
E a glória de entregar-me, assumida

Me orgulha, que sendo só mulher
Devo tudo ao coração e a esta pele
Que em plena glória assim se quer
Tomada, possuída, e não repele

As carícias legítimas de amantes
Na lembrança feliz deste meu ser:
Homens, mulheres, apenas por instantes...

E quando envelhecer, quanto prazer
Penso ainda fruir, pois que a história
Do coração não envelhece em sua memória!


10
Um desenho lançado no papel
No plano e no espaço simultâneos,
Se insere naquele tênue véu
Que plasma da vida os instantâneos,

Como película ou filme que então capta
Da vida o movimento congelado
Em fotograma assim eternizado,
Que a imaginação persegue e rapta.

Mas por vibrar assim, dupla verdade,
Plano e espaço concomitantemente,
Trazendo a sensação de eternidade,

Por isso é o Desenho tão constante:
Perseguidos pelo Eterno, eternamente,
Para alçarmo-nos do pó, por um instante.

FIM

Sonetos Metafísicos da Alma (II) (de Alma Welt)


Paisagem- óleo s/tela, de 120x150cm, de Guilherme de Faria, coleção particular, São Paulo


Índice

1 Soneto de Candura
2 Elíseos
3 Ananke
4 Jocosa física
5 O Vazio
6 Metamorfoses
7 Nightmare
8 Bucólica
9 Days of wine and roses
10 Délire de Grandeur


Soneto de Candura

1
Aproxima-se a estação festiva
E eu, da minha janela para o mundo
Indago-me se ainda estou viva
Se o meu viver assim me vem do fundo

Da alma, ou se acaso ainda me encolho
No grande útero ideal em que me aninho
Á custa da beleza que recolho
Como palha e gravetos para um ninho.

Lá fora, na real periferia
Sei que me espera a alegria
Sincera, que a face lhes decora

Pois da humana condição sempre me alegra
A tocante ingenuidade que vigora
No coração, que à luz assim se integra.



Elíseos

2
Ao longe bate um sino insuspeitado
Na grande cidade barulhenta
Recriando um prado recortado
Na alma, por corrente muito lenta.

E atraída pelo som das badaladas
Encontro a capela que me chama
Para o encontro matinal, longe da cama,
Para onde me atraíram minhas passadas

E à minha própria alma neste templo
O meu coração se sente grato
Por esse paraíso que contemplo

Sentada no banco de madeira
Deixando fluir o tal regato
Que vi dentro de mim dessa maneira.



Ananke
3
Eu vi o grande fuso do Destino
Atravessando o céu e a terra num cilindro
De luz, bobinando lento e lindo
Das três Parcas aquele fio tão fino.

Passado, Presente e Futuro
Eu vi de uma só vez nesse momento
E com o mesmo olhar ainda perduro
Perplexa, com o mesmo sentimento,

Pois tive do Mistério a vertigem
Pr fração do Tempo eternizada
E vi do Edifício a fachada,

Embora o alicerce ou sua origem
Permaneça na alma ainda virgem
E a razão de tudo, intocada.


Jocosa Física
4
Há muito me encontro persuadida
De que Deus é mesmo o Sol que ilumina
A Terra, de forma comedida,
Pois se ele se enfurece, nos fulmina...

Mas permanece sóbrio, majestoso,
Produzindo esse calor quase gostoso
Que em geral permite até o prazer
De viver, amar, e agradecer.

E fico assim pasma da pachorra
De Deus, do sol, com a coma loura
Contemplando eternamente esta piorra

Pois num suave bamboleio e giro, qual
Franguinho na grelha a Terra doura
Girando no espeto por igual.


O Vazio
5
O amor é a origem do calor
Que em tudo põe sua nota de vigor
E aquilo que acaso esteja frio
No universo pertence ao seu vazio.

Mas justamente isso é que me intriga:
O imenso Mistério que restara
De Deus que ao criar a chama clara
Também criou sua inimiga.

A luz e a escuridão, por quê a segunda?
Vazio d’alma, o frio coração
Por quê, meu Deus, a dor tão funda,

O bem, o amor, a luz e sua benção
Não se refletem no vazio sideral
Dessa lacuna então preenchida pelo mal?




Metamorfoses
6
O homem Deus criou, foi propalado,
E dele originou-se a mulher.
Essa seria pois um ser castrado
Como a Escritura ainda quer.

Mas protesto, e prefiro a solução
Do grego que rachou o ser ao meio
Por um golpe de Zeus, que assim veio
Colher um e outro lado, o garanhão.

Pois homem e mulher, o mesmo ser
Foi duplicado pelo deus p’ro seu prazer
Com pequenas diferenças de desenho

Mas ambos com um grato desempenho
Pois se só homens possuem os seus compridos,
Ambos pelo deus são possuídos.


Nightmare
7
Acordo nesta cama em que estou,
Assustada, em plena madrugada,
E logo me dou conta, espantada,
Que um silêncio fundo me acordou.

Nem um latido ao longe, nem um galo
Nem o cri-cri dos grilos que são gratos
Quando anunciam chuva, nem os sapos,
Tampouco o Tempo escoando pelo ralo.

E esse silêncio atroz me desespera
Pois deve ser o mesmo dentro a tampa
Fechada do caixão que nos espera

E corro ao espelho apavorada
Por um segundo antevendo minha campa
Sobre a bela face descorada.




Bucólico

8
Ouço a música divina de Beethoven
Na suave pastoral de um movimento,
Um adágio ou um andante ‘poco lento”
Mas não Como aqueles que só ouvem

Pois participo, eu sei, desse passeio
Com o mestre pelo campo em primavera,
Sentindo em seu olhar, que nada alheio,
O camponês na alma ele tempera.

E tanto bucolismo ideal
Me faz por um segundo perceber
Que a alma pode a esse mundo pertencer

Já que, como veio, ela voltou
À antiga Arcádia ancestral,
Onde a doce Psiqué se originou.



Days of wine and roses

9
Quando presa nos braços como torno,
De um homem, assim contida e apertada,
Às vezes me dou conta do retorno
Ao ser que fui, reintegrada.

E atribuo a isso essa saudade
Essa ânsia de voltar a esses braços
Que me faz parecer criando laços,
Já que amada fui à saciedade.

E então, pergunto aos homens e aos vinhos
O que acontece com as mulheres amorosas
Que parecem agarrar-se como rosas

Quando lançadas assim com seus espinhos
Sobre as roupas ou as peles, pegajosas,
Cobrindo e cobertas de carinhos.




Délire de Grandeur

10
Quando lanço minha alma no papel
Em verso ou em desenho assim gravada
Percebo-a então multiplicada
Correndo para o mundo num tropel

De almas iguais, mas facetadas,
Estilhaços da Alma, contundentes,
Ou em nuvens amorosas, envolventes,
Fragmentos das paixões acalentadas.

E então, no meu delírio belle-époque
Me sonho conhecida do Oiapoque
Ao Chuí, na minha terra assim tão vasta.

E me vejo pequenina em minha estância
Olhando a linha que o olhar arrasta
Pelo pampa, em toda a sua distância.

FIM