A Morte

A Morte
óleo s/tela de Guilherme de Faria 1967

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

SONETOS ALEGÓRICOS DA ALMA (de Alma Welt)

Alma Welt

Sonetos Alegóricos da Alma

Índice

1. Amor vinha montado...
2. Num bosque encantado...
3. Vinha descendo o rio...
4. A Vida, meu amor...
5. Hoje acordei de um sonho...
6. Longe ouço o pássaro...
7. Numa floresta gótica...
8. Escutando Chopin...
9. Sonhei que voava...
10. A torre de aço...


Amor vinha montado
1
Amor vinha montado, em disparada
Como um rei ou cavaleiro muito antigo,
Daqueles velhos cantares de amigo
E sua trompa de caça era dourada.

Sete galgos latiam e acompanhavam
Sete pagens também sete escudeiros
Traziam estandartes e cantavam
Baladas de caça e de guerreiros.

Assim vi dentro de mim Amor chegando,
Tendas, cortesãos e saltimbancos
Em minh’alma amor transfigurando

Sua corte,seus exércitos em meus flancos,
Rendida, enfim aprisionada,
Em torre de marfim seria amada...




Num bosque encantado

2
Num bosque encantado me encontrei
Cujo ar carregado de corpúsculos
De pólen coruscante, reparei
À contra-luz em seus belos crepúsculos.

Grandes sombras de carvalho, alcatifadas
De musgos e de líquens como rendas
Semeadas de fungos, assombradas
Por pequenos seres de outras lendas.

E percebo-me, então, naquele mundo
Da alma, de imagens delirantes,
Feéricas, do sonho mais profundo

Reservado a nós, que preservados
Sabemos manter-nos antenados
Na beleza, da qual somos amantes.


Vinha descendo o rio...
3
Vinha descendo o rio lentamente
O barco festivo embandeirado,
Na proa uma sereia iridescente,
O seio nu e o olhar esgazeado.

Como estandarte a vela, e enfunado
Ostentava o signo do Amor,
Mas não aquele coração varado
Pela flecha, o balão de rubra cor.

Galgo-fêmea e raposa, mas eretas
Comandavam na proa esse batel:
O galgo, de casaca em linhas retas

E dei-me conta do delírio do soneto
(não sendo o primeiro que cometo)
Eu, que assim sonhava no papel...


A vida, meu amor
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A vida, meu amor, me quer assim:
Amando, desejando, apaixonada.
Quanto mais intensa a minha estada
Mais louros e repouso no meu fim.

Renina, eu sei, já me alertou
Para esse furor que viu em mim.
Uterino, ela disse, e me chocou...
Eu que para o amor à Terra vim!

Sou Alma, o meu nome já diz tudo
E pertenço à estirpe de Florbela.
Amando o amor e crendo a vida bela

Refaço em meu destino, que assim mudo,
O percurso das grandes amorosas,
Rubras nos seus leitos, como rosas.



Hoje acordei de um sonho...
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Hoje acordei de um sonho lindo
Chorando de saudade desse sonho
Que me levara ao lugar risonho
De onde lentamente venho vindo:

Um pomar, a terra alcatifada
De flores, margaridas e jasmim,
A macieira minha, já gravada,
Anotada de todos os meus “sim”

Em torno ao casarão avarandado
Eu revi o pampa sem fronteira
Onde tive o sonho começado

E me votei um dia consciente,
À Arte, como ao Cristo faz a freira,
E ao Amor, em seu leito muito quente.



Longe ouço o pássaro...
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Longe ouço o pássaro cantor
Que parece ser um sabiá
E eu me pergunto o que faz o amor
Deslocado aqui na terra má?

Barulho e correria comezinha
Tão distante daquela terra minha
Onde ouço do mate suas canções
Enquanto vinho dorme nos porões.

Mas toca o interfone no momento
E mando subir o comprador
De quadros, hesitante, muito lento,

Que percebo deseja alongar
Sua estada aqui neste lugar
Onde parece farejar o amor.


Numa floresta gótica...
7
Numa floresta gótica me vi
Perdida caminhando sob os arcos
Formados pelos ramos arqueados
Onde não cantava o bem-te-vi

Mas sim o cuco enervante, renitente
Ressaltando pelo oposto o silencioso
E pesado imobilismo penumbroso
Que faria este cenário comovente.

E então me perguntei quase nervosa
A razão da interferência de um barulho
Nessa imagem solene, majestosa.

E a alma em mim, de que me orgulho,
Pôs o dedo no meu lábio, carinhosa
Fazendo rrrrr....rrrr... como um arrulho.


Escutando Chopin..
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Escutando Chopin vindo do lado
Reclino-me dolente no meu leito
E ponho-me num sonho acalentado
O piano ressoando no meu peito.

E vejo-me, a mim, vestido longo,
De pé ao lado do Steinway
Negro, negro como um rei do Congo
Ou como o rolls-royce desse rei.

E me pergunto então porquê a imagem
De negritude assim associada
Ao claro Chopin e sua balada?

E a alma respondeu: “o ser romântico
À noite pertence e à passagem
Da lua no céu, seu triste cântico.”


Sonhei que voava...

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Sonhei que voava para a lua
Meus longos cabelos pelos ares...
Olhei-me em seu espelho e estava nua
Quis voltar e encontrei seus patamares.

Degraus da lua, sim, eu bem sabia
Que essa escada secreta existia
Para aqueles impedidos de voar
Ou quem se vendo nu, tem de voltar.

E então recomecei a escalada,
Agora tímida, talvez envergonhada,
Meus cabelos a cobrir-me qual Godiva

No passeio sob a lua, preservada,
Sem cavalo e sem nenhuma comitiva,
Minha noturna nudez iluminada.


A torre de aço
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A torre de aço e vidro pós-moderna
Pairando sobre nuvens seu mirante
Aparece no meu sonho delirante
Como torre de Babel que fosse eterna,

Pois no alto da antena ou pára-raio
Eu vejo o estandarte da soberba
Tremulando sobre a alma num desmaio
De vertigem, na subida tão acerba.

E então eu questiono isto ser
Da humana condição tão orgulhosa
Da qual eu participo sem querer.

Sou Alma, eu vim de Psiquê
Sou antiga como o mundo e tão vaidosa,
E ingênua também, como se vê...

FIM

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Sobre a poesia dos minutos (de Alma Welt)

(84)

Observo as abelhas em seu vôo
E penso que descubro o seu segredo:
A concentração no eterno enredo
É a chave do sucesso do seu povo.

A rotina é talvez poesia pura
Ou é ela mesma o seu sentido
Pois ela não exclui a aventura
Que põe todo plano dissolvido.

E me ponho a cogitar se fico quieta
Imóvel no meu canto e encantada
Não me torno a essência do poeta,

Pois não há maior mistério e poesia
Que a senda dos minutos, tão pingada
Traçando a perigosa travessia.

04/01/2007

domingo, 7 de outubro de 2007

Soneto Pedante (de Alma Welt)

(37)

Como disse Calderón a vida é sonho,
Continuo inclinada a acreditar...
Tudo é miragem para nos mesmerizar
Como o fazia Mesmer, doutor bisonho.

Na verdade o ser humano só foi feito
Da onírica matéria de Miranda
Que em meio à tempestade ainda desanda
A fazer ressoar frases de efeito

Pois saudou o admirável mundo novo
Que o Aldous captou entre os ateus
Projetando melhorar o pobre povo

Mas sonhar com a Natureza ainda prefiro,
Como Jâmblico, discípulo de Porfírio,
O sonho que ela tem do próprio Deus...


19/12/2006


Notas do editor

(Pelo título auto-crítico percebe-se que Alma quis ressaltar o caráter humorístico desse seu curioso soneto.)

*Calderón-- O grande escritor barroco espanhol Pedro Calderón de La Barca
, que escreveu a notável comédia “La vida és sueño.

*Mesmer- Franz Mesmer, médico alemão( 1735-1815) fundador da teoria do magnetismo animal, precursora da prática sistematizada do hipnotismo.

*...matéria onírica de Miranda- Alma se refere a personagem da peça A Tempestade, de William Shakespeare, a linda e quase encantada filha de Próspero, duque destronado de Milão. Shakeaspeare colocou na boca deste, na peça a célebre frase: “Somos feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos”. Quanto a Miranda , esta pronuncia a “frase de efeito” a que Alma se refere ao final da peça, a famosa “O brave new world...”( ó admirável mundo novo...), que Aldous Huxley citou como titulo de sua obra profética “Brave New World”( no Brasil, O Admirável Mundo Novo ), em que prevê um duvidoso e controvertido planejamento genético como meio de aperfeiçoar a raça humana.

Jamblico – Alma se refere ao pouquíssimo conhecido filósofo Jamblico de Caldéia, da época do imperador romano Juliano, o Apóstata, do segundo século do cristianismo. Jamblico era discípulo de Porfírio, o neo-platônico, que por sua vez era discípulo de Plotino. Alma se refere a um maravilhoso texto de Dmitri Merejkowski em que este coloca na boca de Jamblico (diante do imperador que o procurou) um monólogo mais poético, na verdade, do que filosófico, sobre a Natureza que sonha com Deus, perpetuamente. Alma considerava este o mais belo texto que ela jamais leu.
(Lucia Welt)

A zona do coração (de Alma Welt)

(106)

Entre sombra e luz cai o vazio
Que é da visão e sonho o limiar,
E essa zona ambígua em tom macio
Guarda o coração em seu amar,

Posto qu'ele mesmo não é bem claro
Conquanto igualmente não escuro,
Quer o esclarecido e o obscuro
Assim como o profuso ama o raro.

Mas mesmo tão chegado a submundos
O amor mal se perde em emoções
Outras que a da luz que a ele impões,

Ó coração obstinado e incoerente
Que tens a natureza da semente
A brotar na fronteira de dois mundos!

10/01/2007

Soneto antigo (de Alma Welt

(50)

O que pode um coração já impotente
Quando tudo já foi dito e feito,
E as palavras vagam no teu peito
Como as sombras de um luar ausente?

Esgotaste a quota de argumentos
E de súplicas servis ao contendor,
Esvaíste a ração de sofrimentos
E agora não tens senão rancor.

E olhas então no teu espelho
E vês que tudo estava em tua mente
E o outro nem existe, simplesmente,

Pois foi contigo mesmo que lutaste
E nada podes contra o deus-escaravelho*
Do deserto que em teu peito semeaste.

22/12/2006

Notas da editora:

*deus-escaravelho- provavelmente o símbolo do sol
dos egípcios dos tempos dos faraós, ao mesmo tempo um
símbolo do “eterno retorno”, pois os escaravelhos
do deserto rolam com as pernas traseiras uma bola
de esterco, como uma esfera ou círculo perpétuo.
Este é um dos mais enigmáticos sonetos da Alma
e esta imagem arcaica sugere a sua conotação metafísica.
A rigor, não deveria estar nos "Sonetos Pampianos",
mas entre os "Sonetos Metafísicos da Alma". (Lucia Welt)

A Magia do Olhar (de Alma Welt)

(9)

Quando vier o inverno desta vida
Eu terei muita coisa pra contar,
Mas se estiver ainda convencida,
Como estou, de ser de mim meu avatar.

Em verdade venho, sim, assim contando
Dia por dia a saga de viver,
O meu olhar atento decifrando
Os signos das coisas e do ser.

Como não podem ver alguns amados
Que a vida é magia e ritual
E todos os minutos são sagrados?

Então devo prostrar-me agradecendo
A beleza de tudo o que é igual
Mas sempre nova face oferecendo...

11/12/2006

A saga do corpo e coração ( de Alma Welt

(130)

A razão de ser é mesmo amar.
O resto é só pra manter vivo
O corpo em sua agonia milenar
E nele a alma e o coração cativo.

Esta carne luta pra fundir-se
Tanto quanto a alma em sua ânsia
De com outra alma confundir-se
Malgrado a permanência ou constância

E nesta aflita busca da metade
Procurando o membro amputado
Que era parte de nós, dissociado,

Que vaga por aí nesse deserto
Mas que porventura anda tão perto
Perdido em sua própria tempestade...

17/01/2007

O som da fruta (de Alma Welt)

(109)

Tem dias em que ando meio a esmo
Nos locais preferidos desta estância
Procurando o sentido, aquele mesmo,
Que neles encontrava na infância.

Mas percebo que a concentração
Como modo de estarmos num local,
É o contrário da perfeita integração
Que nos fazia ser o ser total

Que éramos naqueles tais instantes
Como a sombra fugidia de uma truta
Nas águas, com rumores circundantes

Do surdo crescimento de uma fruta,
E a vida um encontro tão fecundo
Em que olhávamos a flôr, e era o mundo!

11/01/2007

NIHIL, ou Velho Tema (de Alma Welt)

(75)

Quando penso que o meu melhor poema
Será aquele que nunca escreverei,
E que, entre mil, o melhor tema
Não terá sido nenhum que celebrei;

Quando percebo que tudo é aventura
E a vida não é mais que puro jogo
De dados lançados à ventura
E cercado pelo blefe e pelo logro,

Eu sei que construí em chão de areia
E recheei de hóspedes bisonhos
A mansão que eu queria sempre cheia.

E que no fim de uma vida de trabalho
Verei ruir como um castelo de baralho
Toda a arquitetura dos meus sonhos...

02/01/2007

O passatempo das horas (de Alma Welt)

(97)

Para escapar às tentações do tédio
Não aceito nenhum jogo de baralho,
Nenhum de tabuleiro ou o borralho
Dos sentimentos e do raciocínio médio.

Em matéria de cartas só respeito
As da cigana com seu pacto astral
Ou aquelas que exigem muito peito
Como as do Rôdo em seu pôquer marginal.

Mas servil, vejo o passar das horas
Como um mordomo que exige as atenções
A elas porque são grandes senhoras

Que preferem o soprano da poesia
Que lhes é apresentada nos salões
Onde o próprio Tempo se enfastia.

05/01/2007

A noite escura da Alma (de Alma Welt

(126)
"La noche escura del alma” (San Juan de la Cruz)

de Alma Welt:

Noite, noite escura desta Alma
Solidão, angústia e mil tormentos,
A corredeira da memória e pensamentos,
Sem remanso ou praia, não se acalma.

Insônia, inferno dos remorsos
A remoer a consciência despertada,
Ranger de dentes, inúteis, vãos esforços
Para conter a dor desta jornada.

Onde o estuário dos amores, sua foz,
Seus momentos aprazíveis de langor?
Onde as palmeiras do enganoso amor?

Agarrada nessa tal casca de noz
Que me coube no universo porventura,
Náufraga sou na triste noite escura...

17/01/2007

Poesia, essência da alma (de Alma Welt )

(132)

Inteligência unida a uma virtude
É a fórmula ideal de um bem-viver,
E mais, a de uma bela completude
Para um bom poeta ver nascer.

Há quem ache que a Poesia é coisa vã
Ou matéria periférica e específica
De um gosto ou de tendência à metafísica
E que é melhor evitá-la gente sã.

Mas não vêem ou não sabem esses incultos
Que ela é a própria dádiva do ser,
Até daqueles seres mais estultos?

Não há como fugirmos dessa Musa,
Ela está em tudo, ela é difusa
E sua essência é o contrário do morrer.

19/01/2007

Percepção (de Alma Welt)

(209)

Tem dias em que vejo claramente
O quanto necessito de alegria.
Estou só, sou bela mas carente,
E o mundo já disso desconfia.

Não há soluções para o viver
E a tragédia me espera, universal.
Quero viver, gritar pra não morrer,
O que posso escolher como um final?

De tanto acreditar que estava quite
Com o amor, sonhando o dia-a-dia,
Perdi a fé e noção do meu limite.

E por tecer grinalda em minha mente
Ao registrar o olhar pela poesia,
Tornei-me Ofélia de um cantar demente...

17/01/2007

Nota da editora:

Um soneto como esse, que acabo de encontrar no "caderno secreto" da Alma, se o tivesse descoberto a mais tempo me teria induzido a acreditar no suicídio da minha irmã cuja morte ocorreu dois dias depois de tê-lo escrito. Mas como foi recentemente solucionado de maneira nada consoladora o enígma de sua morte, tendo sido comprovado o seu assassinato, posso somente atribuir a um momento de desencanto existencial ou à angústia premonitiva de minha irmã, pois ela pressentia sua morte eminente e trágica, como seus últimos sonetos o sugerem. (Lúcia Welt)

O trem (de Alma Welt)

193)

Quando aqui chegava o nosso trem
Na pequena estação perto da estância
Era uma festa enorme para alguém
Que amava os signos da infância.

Os ruidos, silvos e a fumaça,
O vapor envolvendo qual neblina
O vulto espectral de uma menina
Muito branca atrás de uma vidraça...

Era eu que olhava e que me via
Como sempre em tudo em minha vida
Narradora e personagem escolhida

E que esperava a mim na plataforma
Para abraçar-me em meio a algaravia
Daquela multidão quase sem forma.

17/11/2006

No Labirinto da Frida (de Alma Welt)

(151)

No jardim da minha avó, um labirinto
Foi plantado por ela, eu o sinto,
Embora há quem o diga mais antigo
E que nisso consiste o seu perigo.

No seu centro toda imagem desvanece
Ou talvez encontre o Minotauro,
Pois parado ali o tempo permanece
Sem passado, sem futuro, sem restauro.

Conquanto fui guria até segura
Sempre passei-lhe ao largo com respeito
Pois prezo demais a minha figura.

Creio, no jardim da velha Frida
Mora o segredo, a causa e o efeito
Do amor e da poesia em minha vida...


05/12/2006

Antípodas (de Alma Welt)

(164)

Juventude, o quanto hei de querer-te
Por uma vida inteira de memórias,
Mas eu pensar em ti já como estórias
É sinal de que logo vou perder-te!

Transformei cada minuto em puro verso
E em crônica o corriqueiro lance,
Um outro em episódio controverso,
E a breve temporada num romance.

Eis o que tem sido o bem e o mal:
Viver a vida sem sair deste local
E conhecer os polos mais extremos

Vivendo entre a estróina e a asceta,
Ser tanto sibarita quão profeta,
A gulosa e o cadáver que seremos...

17/11/2006