A Morte

A Morte
óleo s/tela de Guilherme de Faria 1967

domingo, 27 de dezembro de 2009

Os viajantes do Nada (de Alma Welt)

O que poucos viajantes nos contaram
Da Morte não merecem o neles crer,
E foram muito raros os que voltaram:
Orfeu, Hercules, Dante, e o armênio Er.

E talvez uns poucos mais discretos
Que preferiram na volta se calar
Pois os lances e ritos mais secretos
Não quiseram certamente alardear.

Cristo foi um deles: por seguro
Não deixou que o tocasse a Madalena
Alegando ainda não estar puro...

Só sei que o mal dito em forma plena
Só nos aumenta o medo desse escuro
E ao Nada novamente nos condena.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Quando cessam as palavras (de Alma Welt)

Tendo vivido pela força da palavra
Só temo o tal momento de afazia
Final, quando a mente a língua trava
Pois nada mais restou para a Poesia,

Quando não mais se tem o que dizer
E tudo se resume num suspiro
Ou numa dor tão grande de morrer
E deixar o mundo em seu respiro,

Que afinal era tão belo como era
Com as mágoas e a feiúra sem sentido
Pois nele havia infância ou houvera.

E numa espécie muda de “aqui vamos”,
Talvez como um sonho indefinido
Alcançamos a paz que não sonhamos.

(sem data)

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

As horas voam (de Alma Welt)

As horas voam, é o que elas fazem,
Ou então cavalgam os cometas,
Não param, e no tempo se desfazem
Não antes de pedir que não te metas.

São senhoras sérias e apressadas
Talvez por serem filhas de um atleta,
O Tempo de larguíssimas passadas
Só tem tempo para a sua predileta,

A temporã, que te vê e se emociona,
A única que ainda se debruça
E ouve teus lamentos de chorona.

E então vês que a vida é fictícia
E já não tens teu ursinho de pelúcia,
Não tens mais as horas de delícia...

09/12/2006

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

O rio ( de Alma Welt)

Atirados na corrente sempre fomos
Em que nos debatemos e bradamos;
O rio em que nascendo mergulhamos
Ainda é o mesmo desde Cronos,

E não como o Heráclito dizia
Que nunca é o mesmo para nós;
O Tempo para o homem não sorria
Na aurora e tampouco logo após,

E ínclito, impávido, inclemente
Como rio real, e não da mente,
Passa sem levar-nos em questão,

Pois o que é uma folha que navega
Ou um pequeno galho que se entrega
Se levados vamos todos de roldão?...


08/07/2006

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

La vida es sueño (de Alma Welt)

Penso logo existo, diz Descartes,
E eu de mim começo a duvidar.
Serei eu uma alma a me pensar
Ou o fruto final da minha arte?

Se olho para trás minha bagagem
Constato que ela é bem mais real,
Em peso, densidade e coragem,
Do que esta pele branca de areal.

Somos sonho de um deus desconhecido,
Não sabemos o seu nome para orar
E tememos mais ainda o acordar...

Pois no despertar tudo é perdido,
E dói, ah! como dói ver desfiar
Um sonho noutro sonho entretecido...

(sem data)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

A Pergunta (de Alma Welt)

Saberei morrer, chegada a hora?
Eis a pergunta que nunca quer calar.
Somos para morte aqui e agora,
Nunca prontos e sempre a adiar.

Não estou muito certa de que a vida
Seja mesmo um projeto que deu certo
Uma vez que é menos bela que sofrida
E o final se passa sempre no deserto.

Ou então, triste, solitária e dolorida
É a nossa chegada àquele porto
Onde não há festa e sim um morto,

Que somos nós, esticados, macilentos,
Expostos como nunca nem em vida
Num falso carnaval de gestos lentos.


(sem data)

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

A vida (de Alma Welt)

A vida, meu amigo, é tão estranha
Que não fosse o risco de uma rima
Eu diria que é a teia de uma aranha
E no centro está aquela que dizima.

Ou então que a vida é uma aventura
Num trem fantasma de verdade
Em que os companheiros de tortura
Vão sumindo a cada feia novidade.

Ou ainda que a vida é uma trapaça
E que somos nós o trapaceiro
Vendedor de elixires de cachaça

Para nós e até para os amados
A quem amor juramos, verdadeiro,
Quando mal suportamos nossos Fados.

(sem data)

Nota
Acabo de descobrir este notável soneto inédito na Arca da Alma, que muito me fez rir, e que vou imediatamente postar no blog específico dessa vertente da Poetisa: o dos Sonetos Humorísticos da Alma. (Lucia Welt)

Ariadne em Náxos (de Alma Welt)


Ariadne em Náxos- pintura de John William Waterhouse (escola inglesa do século XIX)


Não temos planta baixa desta vida,
Suas câmaras, alcovas, confusão.
Uma aposta errada ou indevida
Põe tudo a perder e sem perdão.

Alguma lógica a nós perceptível
É a do encadear de circunstâncias
Que vemos perscrutando o fio sensível
Que atravessa nosso dédalo de ânsias,

Como aquele da Ariane sem dedal,
Alinhavados como ela ao ser amado,
Pasmo herói confuso e... enrolado,

Pois encontrar a completude original
Numa Náxos aberta e sem volutas,
Eis o nexo, afinal, das nossas lutas.

06/04/2005

Nota
Acabo de encontrar neste domingo, na Arca da Alma, este notável soneto inédito, um tanto filosófico, e a que não falta um toque do humorismo peculiar da Poetisa, cheia de referências, ilações e até trocadilhos. (Lucia Welt)

Por curiosidade republico aqui um outro soneto de mesmo título pertencente ao ciclo Sonetos Mitológicos da Alma, em que a Poetisa aborda o tema de maneira bem diferente, mas igualmente humorística:


Ariadne em Náxos (de Alma Welt)

( Dionisos )

3
Nesta Náxos, perdida, abandonada
Fui por Teseu logo esquecida,
Ou então foi a vela, assim, quadrada,
Que não pode interromper sua partida.

Por isso, ou razões da deusa Ananke
Fiquei a Zeus dará, meio perdida,
Com o fluir do meu destino assim estanque,
A ver crescer meu ventre, embevecida.

Até que o deus alegre, brincalhão,
Aportou nesta Náxos sem nexo
Trazendo um grande falo, como sexo

De madeira, polido, ornamentado,
Com correias preso, pendurado,
E pediu-me que o servisse... esse bufão!

Mariposas (de Alma Welt)

Eu costumava olhar as mariposas
Efeméridas* fugazes no seu cio,
Dançando a doce dança das esposas
Enquanto eu meditava no que crio,

Se vale mesmo a pena de criar
Tanto verso e tanto sonho em vão,
Já que a vida é um breve despertar
No meio da infinita escuridão.

Ou, se poeta, estou fora do mundo
Pois os seres vêm só para amar
E dar à luz um outro mais fecundo.

E se na festa dessa roda de Sansara,
O artista é só o flash que dispara,
Capturando sem jamais participar...

16/08/2005

Nota
Efeméridas- uma espécie de mariposas cujo ciclo completo de vida: nascimento, crescimento, vôo nupcial, procriação e morte, dura apenas um dia.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

O canal (de Alma Welt)

Trago a suspeita em que me encano,
De que a vida sempre foi desconfortável
Para o desamparado ser humano
Pois a morte permanece indecifrável.

Ser feliz só é possível ao bobo-alegre
E também ao de baixa consciência
Ou que de além-mundos tenha a febre
Para mascarar tanta impotência.

Pois tal fobia é visível na Natura
Desde que o animal exibe o medo
Na vã corrida, queda, e captura.

E ninguém quer morrer, nem no final,
Com um pé sobre o outro no penedo
Enquanto sobe a maré deste canal...

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Ritual (de Alma Welt)

Para a minha Musa eu merecer
E os poemas que me entrega,
Devo estar e não somente parecer
Clara, fresca, não saída de refrega.

O olhar límpido, a pele descansada,
Os cabelos soltos e sem laços
Vestes brancas, também, de iniciada
E meus brancos pés em lentos passos.

Assim escrevo meu soneto matinal
Que abre o meu dia sem deveres,
Todavia em constante ritual.

Pois muito cedo votei-me à Poesia
E descartei os fúteis padeceres,
Percebendo que a Morte também lia...

(sem data)

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

O Labirinto de Dioniso (de Alma Welt)

É possível um ser o outro conhecer?
Poderemos penetrar num coração?
A pobre alma trancada num porão
Realmente quer fugir ou transcender?

Estaria o grego antigo enganado:
Como Ícaro de mal coladas penas,
No corpo de um Titã, encarcerado,
Dioniso mal tem asas de falenas...

E medroso, submisso, acovardado
Quisera ali ficar eternamente
Pois teme o que haverá do outro lado,

Já que o teto azul, solar, do labirinto
(não se trata de um porão, eu bem o sinto)
É consolo e ledo engano, suficiente...

(21/08/2005)

sábado, 24 de outubro de 2009

O Ser e a Poesia (de Alma Welt)

Pensar o Ser, tarefa inconclusiva
É do filósofo a grande obsessão,
Embora o Ser em si, matéria viva,
Dispense o pensar, tal como a ação.

"Estar-aí-no-mundo", eis a senha,
Possível entre o Poeta e a Poesia
A quem, real, repugna a resenha
Do que claro e pronto já nascia.

Assim, não confundamos os estribos
Das selas de um e outro cavaleiro
Que por certo vêm de duas tribos.

Quanto a mim, seduzida, já o sinto,
Na Noite do pensar, sem candeeiro,
Perdida devo estar, no labirinto...

29/12/2005

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Meta-física (de Alma Welt)

Concentro meu olhar numa cadeira,
Para sentir a essência da Natura.
Ou muito além, naquela vã fronteira,
Para inferir da Terra a curvatura.

O pó, a relva, inseto ou ave,
Tudo contém o todo e o universo.
Na verdade, o mundo e seu reverso,
Pois no hiato mesmo está a chave.

No átomo o vazio é bem maior,
Dizem os cientistas (um espanto!),
Do que a matéria ao seu redor.

E entre saudade, dor, e a solidão,
Que sempre me acompanharam tanto,
Está o espaço da humana condição...

(sem data)

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

O Eterno Retorno (II) (de Alma Welt)

Não digo adeus às coisas tão amadas
Que me acompanharam nesta vida,
Como o canto das aves nas ramadas
Ou as cores que me põem embevecida

Dos poentes que me fazem ver o além
E descortinam a glória que teremos,
Quando não diremos mais “amém”,
Mas seremos já o que nós vemos,

Integrados no Mundo e no Devir,
Sóis, espaço-tempo, eternidade,
Ou só um cometa em sua saudade

Na viagem solitária, extrema em si,
Durante a longa jornada a se esvair,
Para voltar ao lar, que é mesmo aqui...

08/01/2007

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Após a queda (de Alma Welt)

Após a queda, retorno ao casarão,
Que andara pelo mundo, peregrina
Em busca de algo numa esquina
Que mesmo aqui estava, neste chão.

De meu feudo a Morte me expulsara,
Não me queria aqui sem o meu Vati.
De Infanta destronada se livrara,
Que me tornara amarga como o mate...

A Usurpadora lágrimas não quer,
Um pé lá, outro na vida qual anfíbia,
Mas na macabra orgia é só mulher,

Devassa, sinistra e falsa amável,
A vi tocar um violino numa tíbia
Na sala do defunto inigualável...

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

A Frota de Naufrágios (de Alma Welt)

Reconstruo a cada dia o arcabouço
De meus planos e sonhos acordados
Que ao final do dia eu bem os ouço
Gemer e afundar qual naufragados

Com o belo sol poente deste pampa
Que anuncia a noite de outro sonho
E logo da Pandora erguendo a tampa,
Aquela dos poemas que componho

Como barcos de gregos e de sírios
Que se juntam na praia, controversos,
E constroem uma frota de delírios...

Quantas inquietudes, cismas várias,
Quanta lucidez perdida em versos,
Estranha frota de barcaças solitárias!

21/11/2005

O poeta (de Alma Welt)

O poeta não nasce em qualquer um
Senão naqueles seres de exceção
Que recusam o falso e o comum
Procurando alturas e amplidão.

Não me venham dizer que a poesia
É vã ou que sem ela bem vivemos!
O ser que, infeliz, não se extasia
É menor que o animal que percebemos

Como o lobo uivando à luz da lua
Ou o pássaro que canta na floresta
E a cigarra que o minuto perpetua

Alongando os segundos com seu verso,
E na muralha cavando aquela fresta
A minar o grande dique do universo...

(sem data)

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Amor e Arte (de Alma Welt)

Muitos são os nomes do divino
Mas por certo o Amor é o primeiro,
Com a Arte, sua face e violino,
O poético real e verdadeiro.

Passar por esta vida como um canto,
Um poema, um quadro ou um desenho
Que tenham do amor o mesmo encanto
E se queira buscar com mesmo empenho

É milenar nota do artista, distintiva,
Que há de pagar por ela um alto preço,
É dom que traz de Deus a marca viva.

Então a alma canta, os traços vibram
A palavra recobra o seu apreço,
E pronto: vida e morte se equilibram.

(sem data)

Antípodas (de Alma Welt)

Para ser a Alma mesma que me cabe
Devo cantar somente ou versejar
Acordar em ser e êxtase de amar
Para viver como se nada nunca acabe.

Todavia aquele espectro soturno
Teima em me seguir e acompanhar
Mesmo quando é dia e não seu turno,
Que é da noite seu tempo e seu lugar.

Mas eu sei que os polos se entrelaçam
E para um deles ser, o outro oponho,
Que sozinhos ambos doem e ameaçam.

E o mistério de viver nisto consiste:
Estar no mundo e saber que tudo é sonho,
O mundo é belo, e de verdade... nem existe.

domingo, 11 de outubro de 2009

A Verdade (de Alma Welt)

A Verdade a todos nos liberta,
Ou torna a mente bem mais leve,
Já dizia um velho bom profeta.
Mas fará mais longa a vida breve?

Encarar a Verdade em fundamento
Quase foi fatal a esta guria,
Pois a Morte, angústia-pensamento,
Cedo à consciência me irrompia.

A idéia de que possa ser o Nada
E a dissolução de todo o Ser
Atormenta cada rês desta manada.

A mim quase me fez desesperada,
Até o poeta em mim me prometer
Deixar-me ser em nova temporada...

(sem data)

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Revelações (de Alma Welt)

O poeta em mim fixa no olhar
A condição perene do momento
E transforma a ação em pensamento
E em verbo o cenário do pensar.

A cor do gesto o olhar plasma
No exercício do diário poetar
Onde o ser comum deixa passar
Como se a ação fora um miasma.

Mas tudo permanece na retina
Como a daqueles mortos de terror
Que gravam a face do assassino

Na pupila que logo perde a cor
Assim que o detetive a examina
E revela como prova de um destino.

(sem data)

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Cabra-Cega (de Alma Welt)

A poesia que coloco no papel
Será sempre a imagem verdadeira
Daquilo que projeto sob o céu
Enquanto brinco a louca brincadeira

Que é este estar às cegas nesta vida
Como aquele jogo dos infantes
Cuja eterna tensão durava instantes,
Do tatear e o reencontro, comovida.

Assim, também cego é o soneto
Que me faz percorrer sombria senda
De dores, emoções e algum tropeço,

Quando, afinal, na chave do terceto,
Inaudito como o fecho de uma lenda,
Toco meu próprio rosto... e o reconheço.

(sem data)

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Big Bang, ou a Fúria do Logos (de Alma Welt)

Medito sobre a verve do poeta
E o perigo de lidar com as palavras
Para além da ilação delas, direta,
Com a semeadura e suas lavras

Já que os vocábulos são germe
De novas inquietudes e questões,
Quer colhidos com outras intenções
Ou plantados abaixo da epiderme

Do ser, aquém da carapaça,
Ou ainda bem debaixo da razão
(e nisso consiste a ameaça)

Pois a fúria contida na origem
Fez do “logos” a causa da explosão
Que criou o Universo e sua vertigem...

(sem data)

Ulisses (de Alma Welt)

Viver o mundo, esperança e agonia
E a louca incerteza da existência,
Driblando a mortal melancolia
Que é sempre o final ou a falência

De todos os sonhos e saudades
Por mais que a névoa dispersemos
De nossos erros e maldades,
Pequenos que sejam, de somenos,

Eis a tarefa heróica desse ser
Que é o homem, na sua dimensão
Tão dúbia de tristezas e prazer.

Enfim, tornar-se surdo à algaravia
Ou amarrar-se ao mastro da razão
Na última e arrastada calmaria...

05/01/2007

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Vida em verso (de Alma Welt)

Constato que possuo dupla vida
Revendo-me mais nítida nos versos
Que continuam a vibrar depois de lida
E perpetuam lances bons e os adversos.

E ao rever esta já vasta bagagem
Que refaz meu percurso depurado
Eu percebo que nada foi bobagem
E o que a letra grava está gravado

E passa a ser a vida verdadeira
Pois o fato e o gesto se perderam
Na fugaz e vã vida primeira.

Eco de mim mesma que me encanta,
Sou ninfa cujos dons emudeceram
Mas ao tornar-se pedra vive e canta...

(sem data)


Nota
Mais um um notável soneto recém-encontrado na Arca da poetisa. Alma reafirma mais uma vez, com a bela metáfora do mito de Narciso e da ninfa Eco, a sua fé na realidade da Poesia, na consistência de uma vivência em dimensão poética, como propunha Novalis.(Lucia Welt)

domingo, 23 de agosto de 2009

As perguntas... (de Alma Welt)

Longas vigílias, sofridas, da razão,
Em que a mente luta contra o fado,
O triste destino em comunhão
Do homem como ser desamparado.

Somos para a morte e por certo
É esse o grande laço que nos une
E talvez o segredo do deserto
Com que às vezes o coração nos pune.

No fatal desenlace somos unos
Ou, ao contrário, é a suprema solidão?
Quais os signos e momentos oportunos

Onde a revelação está, se nos escapa?
A resposta é uma cruz, uma canção,
Ou se encontra em nós sob uma capa?

(sem data)

domingo, 16 de agosto de 2009

Reminicências (de Alma Welt)

Outrora eu ia nua até a fonte
Buscar água e ervas milagrosas
Que aprendia com mestre Quironte
O mago das quatro patas grossas.

Nos sagrados bosques de Elêusis
Fui discípula daquele sábio nume,
E por colegas tive semideuses
Cultuando do mestre o claro lume.

E ninfa eu mesma fui ou me tornei,
Perdoem-me vocês a bizarria
Aparente do que agora me lembrei,

Pois o que fluente a mente aborda,
Reparem, não é nenhuma algaravia
Mas aquilo que a alma ainda recorda...

(sem data)

Zen (de Alma Welt)

Para poder conhecer e revelar
A linguagem das coisas, tão cifrada,
É preciso ter a mágica mirada,
Aquela do pintor ao retratar

O tema, o ser humano ou objeto,
Que o mesmo amor sem sentimento
Ou sentimentalismo, o que é mais certo,
É preciso para tal empreendimento.

O olho preciso é o que é preciso
E a mente vazia de conceito
Para captar o mais conciso

Que nasce da forma em traço ágil
E é a fala das coisas, seu proveito,
Quando tudo se calou, e é tão frágil...

(sem data

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Para chegar à casa (de Alma Welt)

Para chegar à casa de meu pai
Também tive fortes descaminhos
Daqueles que erraram no Sinai
E outros talvez mais comezinhos.

O bezerro de ouro não havia
Entretanto fui tentada no deserto,
Melhor dizendo: em plena pradaria*,
Por quem não contava tão por perto.

E agora sob a noite enluarada
E o imenso dossel do meu destino
Eu agradeço estar na minha morada

Pertencente e por fim apaziguada,
Sendo parte integrante “del camino”
E a traduzir em versos a jornada...

(sem data)


*Nota

"Entretanto fui tentada no deserto,
Melhor dizendo: em plena pradaria"

- Por curiosidade, republico aqui o soneto que se refere à tentação que a Alma sofreu na pradaria, por parte de Mefistófeles, uma das configurações de Lúcifer, que já havia tentado Fausto. Tenho motivos para crer que se trata de epísódio real da vida da Poetisa do Pampa:


A Tentação da Alma (de Alma Welt)

(152)

Uma vez estando eu a passear
Pela minha dourada pradaria,
Como de hábito imersa num cismar
Que me levava além da alegoria,

Onde coisas, numes, deuses, tudo junto
Cercava-me e querendo-me com eles,
Eu encontrei um tal Mefistofeles
Que não fazia parte do conjunto,

E este rogou-me desnudar-me
Que queria que queria admirar-me
Prometendo-me tesouro todo à parte.

E eu que não me faço de rogada
Fiquei nuínha, e sim, sem querer nada,
Disse: "Eu mesma sou o Ouro e a Arte!

03/12/2006

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Bugigangas (de Alma Welt)

Quando chego de viagem ao casarão
Trazendo na bagagem novo texto,
Que das bugigangas, só pretexto,
Trago poucas, pois lhes tenho aversão,

Sou mal compreendida por Matilde
E mais pela Solange e meu cunhado
Que vêem logo em mim algo de errado,
Qual seja: alienada ou falsa humilde.

Mas não é o que penso que lhes devo,
Frutos estéreis do vão mercantilismo,
Pois que herdei do meu Vati o idealismo...

É que a mim só interessam sentimentos
E as lembranças gratas dos momentos
De pura emoção, memória e enlevo.


15/12/1999

sexta-feira, 5 de junho de 2009

O dia e a noite (de Alma Welt)

Os últimos albores na planície
Costumam me levar à compreensão
Súbita e fugaz da imensidão
Contra o humano limite e superfície.

Eu sei, o sol é Deus e é visível,
Olho severo mas sensível e amoroso
Que doura o nosso mundo compreensível
Pra mergulhar depois no duvidoso.

E assim o que o sol nos esclarece
O sono desmente ou desvirtua
E temos que rever o que parece.

Agora, em suas sombras e estigmas,
A noite das estrelas e da lua
Nos convida ao sonho dos enigmas...


(sem data)

domingo, 3 de maio de 2009

Vida e Integração (de Alma Welt)

Ao olhar a natureza circundante
Eu vejo que sou fruto e parte dela.
Nada do que há me é distante,
A flor, o inseto e minha cadela.

Tudo, o prado, o vinho e o vinhedo,
As peonas que as uvas vão colhendo,
Seus piás e mesmo seu brinquedo,
E no alto aquela nuvem se movendo.

Mas afirmo que tudo isso me forma,
Devo-lhes corpo e mente, é o que digo,
Ao Universo estou ligada pelo umbigo.

Por isso ao despertar sou nascitura,
E de noite a filha pródiga retorna
Ao velho ventre da grande mãe Natura.

(sem data)

segunda-feira, 30 de março de 2009

O que é a Verdade? (de Alma Welt)

“...a Verdade é a Beleza, a Beleza é a Verdade,
isto é tudo o que há para saber.”
(John Keats, em Ode a uma urna grega)


Olhar a vida, o mundo e o de dentro
É a prerrogativa do poeta
Mas simultaneamente, como esteta,
Pois que a Beleza está no centro

De tudo, pois que ela é a Verdade,
Como escreveu Keats no poema
Da urna grega, que logo virou lema
E responde à pergunta sem idade

Que Pilatos teria formulado
Num momento ao Cristo aprisionado,
Deixando-nos, a muitos, sem ação

Pois o Mestre calou-se sabiamente
E legou aos poetas a missão
De reconstruí-la lentamente...

(sem data)

Nota
Vale lembrar aqui a confirmação desse conceito metafísico da Verdade, que Alma adotava, nas palavras célebres de outro grande poeta-filósofo, mas do Romantismo Alemão, Novalis:

"A Poesia é o autêntico real absoluto. Quanto mais poético, mais verdadeiro".

sábado, 14 de março de 2009

Soneto e ruptura (Alma Welt)

Lançar um soneto no papel
É como “deitar sortes à ventura”*
Na expressão antiga do cordel
Que incorre numa certa ruptura.

Sim, pois que há o antes e o após
Do soneto último e durável
Por fração do gozo e do inefável
Desfrute produzido assim a sós.

Serei eu o que fui antes do verso
Que me transfigurou o pensamento
Fechando ciclo agora controverso?

Lançada em novo impulso para o mundo
Sou doravante o fruto do momento
Que ofertou não sua face, mas o fundo...

(sem data)


Nota

Neste soneto (recém-encontrado na arca da Alma) de implicação metafísica, Alma expressa a modificação (ou renovação) que o poeta sente durante e mesmo após a criação de um novo poema. Ela quer dizer que o momento da criação não pode ser avaliado em sua superfíicie, e que a Poesia revela esse "momento" (a instantaneidade do presente) em sua profundidade iniciática que só os poetas inspirados costumam perceber.

"...deitam sortes à ventura"- Essa expressão lusa arcaica, que pode ser entendida como um jogo qualquer de tirar a sorte para escolher alguém, é citada do poema narrativo português, precursor do cordel brasileiro, "Romance da Nau Catarineta", que no Sul ganhou melodia e era cantado no "fandango" até o final do século XIX.
(Lucia Welt)

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Leda e o Cisne (de Alma Welt )




Leda e o Cisne, de Paul Prosper Tillier, 1860


Decidi experimentar volúpia nova
E encarnar princesas mitológicas
Acolhendo as entidades pouco lógicas
Em que Zeus transfigurado punha à prova

A doce e embevecida prontidão
Em tê-lo entre as coxas bem no meio
Ou como chuva de ouro no meu seio
Mesmo que ensopasse meu colchão.

Assim comecei pelo meu cisne
Que ganhara de meu pai, enternecida
Por sua beleza branca enaltecida

Em que senti das plumas como seda
Emergir rubro arpão sem que me tisne
As pétalas e encantos, como Leda...


(sem data)

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Das tentações (de Alma Welt)

"Deitam sortes à ventura qual se havia de matar.
Logo foi cair a sorte no capitão general."
(Romance da Nau Catarineta)



A superfície do papel em branco
Sempre me convida à aventura
Não numa espécie de colóquio franco
Já que nela “deito sortes à ventura”

Como diziam os antigos navegantes,
Aqueles da Nau Catarineta,
Que viram a tentação um pouco antes
Do capitão saltar essa mureta.

Pois entre o espírito e o papel
Há todo um oceano de tensões
Antes das palavras em tropel.

No perigoso mar desta brancura
Assim também sofro as tentações,
Quando a mente namora sua loucura...

11/08/2006

Nota

Acabo de encontrar este notável soneto na arca da Alma, a meu ver digno de figurar nas melhores antologias do soneto universal, principalmente entre os de teor metafísico, ou os que abordam a própria arte de escrever poesia. (Lucia Welt)

domingo, 25 de janeiro de 2009

Cassandra (de Alma Welt)

Meu sonho de guria era real:
Eis-me aqui, poeta em plenitude.
Mas ao vivê-lo, eu vejo quão fatal
É ter um sonho chegado à completude!

Posso enxergar em mim, o dom das Parcas,
Meu Presente, Passado, e meu Futuro,
E neste, pouco além, meu próprio Muro,
Que dos três na palma tenho as marcas.

Mas, bah! por justamente tudo ver,
Muito embora por todos sendo amada,
É que é maior a dor de se viver...

Pois meu dom é ironia do Destino:
No cerne do meu ser (que desatino!)
Cassandra de mim mesma... ignorada.

08/12/2006

domingo, 18 de janeiro de 2009

Abadia na floresta de carvalhos, de Caspar David Friedrich ( de Alma Welt)


Abadia na floresta de carvalhos, de Caspar David Friedrich 1774-1840



Aqui estive eu, nesta abadia
Em ruínas em meio aos desgalhados
E retorcidos carvalhos de agonia
Entre túmulos esparsos, semeados.

Andei com estes monges no seu frio,
E conheço a solidão destas paragens,
Tão longe dos sonhos que ainda crio,
Tão próxima da Morte em sua imagem.

De nós mesmos, da terra e do ar
(não há o que dizer, o que cantar),
Aqui o silêncio vem de dentro.

Eu vi o portal que ainda me espera
E por onde passarei à outra esfera
Para atingir do Mistério o pleno centro...

Alma Welt

(sem data)

A Ilha dos Mortos de Boecklin (de Alma Welt)


A Ilha dos Mortos- pintura célebre de Arnold Boecklin 1827-1901, uma das cinco versões que o pintor fez desse tema.




A Ilha dos Mortos de Boecklin (de Alma Welt)

Não pare de remar, ó meu barqueiro!
Faça jus à soma que lhe pago,
Não hesite perante o nevoeiro
Que já desce saudando o que aqui trago.

Ajude-me também co’este caixão
Pois sozinha não poderei plantá-lo
Num nicho desta ilha em solidão
Com somente minha dor a acompanhá-lo.

Ilha Fatal, eis que sou tripla refém,
De pé na proa, como tu a me alçar
Das águas que ousei atravessar

Desse Letes obscuro em que vogamos,
Com meu próprio caixão que me contém,
Nós três: um só, no barco que remamos...


18/01/2007

Nota
Acabo de descobrir este soneto na arca da Alma e que pela data foi escrito na antevéspera da morte da Poetisa. De profundo teor alegórico-metafísico, Alma parece ter interpretado o famoso quadro do Boecklin, que lhe inspirou o soneto, com o barqueiro, a figura de pé na proa e mais o morto dentro do caixão como sendo três faces do mesmo ser: o morto que chega por seus próprios meios à Ilha da Solidão. (Lucia Welt)