A Morte

A Morte
óleo s/tela de Guilherme de Faria 1967

sábado, 22 de setembro de 2007

Sonetos Metafísicos da Alma (de Alma Welt)


A invocação mágica de Alma Welt" - óleo s/ tela de Guilherme de
Faria, de 150x150cm, coleção particular, São Paulo



SONETOS METAFÍSICOS DA ALMA
(Alma Welt)

1
Deste canto solitário do meu quarto
Avisto a minha vida projetada
Na parede branca, como o parto
Que me lançou na luz, tão deslumbrada.

Alguém me diz que somos para a morte,
Mas não posso isso aceitar tão facilmente,
O que prova que sou jovem, tão somente,
E insisto que aquilo é só um corte,

Ruptura, estrago, ou acidente...
E a vejo como falha, a cada dia,
Uma vez que a vida dela se ressente,

Pois é visível o susto e a rebeldia
No animal que somos, quando em frente
A essa quimera, que o instinto desafia!


2
Na viagem de minha vida solitária
Tenho todo o tempo pra sonhar,
Mas sento-me à janela, que, contrária,
Busca distrair o meu olhar.

Assim vejo a mim mesma contra o fundo
De um cenário mutável e veloz
Que é o retrato dinâmico do mundo
Transformado em filme como nós

Que custamos a entender as tramas várias,
Confundidos com o nosso personagem
Em tomadas assim fragmentárias

Que é preciso editar para entender
O sentido linear e a mensagem
Que somente o Diretor logra saber...


3
Sob a luz que cai sobre esta mesa
Coloco minhas mãos solenemente
E olho longamente a forma tesa
Dos dedos estendidos tensamente

Mas logo descontraio os mesmos dedos
E deixo-os pousados, assim quedos,
Como folhas caídas no poente
De um outono doce, evanescente.

E percebo os dois tonos desta vida
Que, grave, submeto ao meu tino,
Como fui por mim mesma escolhida,

Lançada sobre a mesa como um dado
Da vida, sob o fuso do Destino,
Mas livre para a escolha do meu fado.


4
Outrora caminhei sobre um jardim
De flores densamente alcatifado,
Em que cores e perfumes, para mim,
Eram meu próprio corpo projetado.

Pois criança, estendia meus limites,
Já que as doces coisas tão queridas
Me cercavam lançando seus convites
Confundindo-me à suas próprias vidas.

Crescer foi um processo, para mim,
Doloroso, do cortar de mil gavinhas
Como orquídea transplantada de xaxim.

E me vejo exilada do jardim
Qual de um mágico buquê dessas florinhas,
Como ervas são podadas, por daninhas.


5
Volto ao pomar da minha infância
Lembrada qual se fosse a Grande Era,
Comovida com os ecos à distância
Que a própria memória reverbera.

Caminho ao redor da macieira
Como outrora, com a mesma sensação
De ouvir mais claro o sopro e o coração,
Junto às raízes em que estou inteira.

E confiro junto ao tronco e suas folhas,
Do meu destino o preço e a missão,
Pedindo só ao Tempo: “Não me tolhas,”

“Me deixa completar a minha sina
Seguindo do meu ser a inclinação
Como a semente ao fruto se destina!”


6
Aproximo-me da tela ainda vazia
Com vago temor, mas instigada:
Um impulso poderoso principia
E permite a primeira pincelada.

Qual pulsão rompe a inércia num momento?
Seria talvez este o pensamento
Se tal ato fosse fruto da razão.
Mas longe, seguindo o coração,

Que não cogita e baila entre as cores
Numa dança fantástica, febril,
Sentindo até, das tintas, os sabores,

Percebo quão grande privilégio
É persistir nesta vivência pueril
Que rege meu destino em sortilégio...


7
Sob o cone de luz, que me deslumbra,
Cercada do bailar dos filamentos,
Dissipo no Tempo meus momentos
E sinto a alma sair de sua penumbra.

E vejo-me a mim, melhor, me sinto
Neste turbilhão tão silencioso
Cintilante, como em tela às vezes pinto
O espaço ideal, com tanto gozo.

E é claro, para mim, esse sentido
Do surgir, e após o brilho pressentido
Mergulhar no Nada, novamente,

Numa eterna dança coruscante,
Que consola meu corpo e minha mente
Com ser eterna, e bela, num instante.


8
Quando chegar o meu momento
Quero olhar a vida num relance
E vê-la inteira, sem tormento,
Polida, completa, ao meu alcance

Como em mármore, escultura acabada,
Obra-prima que por ser assim perfeita
Merece a atenção, que nela deita,
E repousa na beleza, apaziguada.

Pois que Vida e arte, uma só
Visão, tarefa, obra, sai da alma
E dura como se não fosse pó.

Assim ludibriamos nossa morte
E sentimos como a vida então se acalma
Por um tempo bem maior que a nossa sorte.


9
Se penso nos amores que vivi
E o quanto dissipei-me nesta vida,
Percebo que nada então perdi
E a glória de entregar-me, assumida

Me orgulha, que sendo só mulher
Devo tudo ao coração e a esta pele
Que em plena glória assim se quer
Tomada, possuída, e não repele

As carícias legítimas de amantes
Na lembrança feliz deste meu ser:
Homens, mulheres, apenas por instantes...

E quando envelhecer, quanto prazer
Penso ainda fruir, pois que a história
Do coração não envelhece em sua memória!


10
Um desenho lançado no papel
No plano e no espaço simultâneos,
Se insere naquele tênue véu
Que plasma da vida os instantâneos,

Como película ou filme que então capta
Da vida o movimento congelado
Em fotograma assim eternizado,
Que a imaginação persegue e rapta.

Mas por vibrar assim, dupla verdade,
Plano e espaço concomitantemente,
Trazendo a sensação de eternidade,

Por isso é o Desenho tão constante:
Perseguidos pelo Eterno, eternamente,
Para alçarmo-nos do pó, por um instante.

FIM

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