A Morte

A Morte
óleo s/tela de Guilherme de Faria 1967

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Metempsicoses (de Alma Welt)

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Nota da editora:

Os números nos versos correspondem a notas explicativas talvez necessárias devido ao caráter pessoal, obscuro ou demasiado erudito a que se referem.

Tive de convencer, com certa dificuldade, a nossa poetisa a aceitar que eu agregasse estas notas explicativas sobre alguns versos deste novo ciclo de sonetos. Alma argumentou que eles eram mesmo para os “iniciados”, e que seu caráter íntimo e até mesmo esotérico, praticamente exigia que se mantivessem restritos a um público mais culto, ou mesmo erudito, como parece ter sido a intenção, por exemplo, de Dante ao escrever a sua “Divina Comédia’. Não havia a intenção de facilitar o entendimento, mas, ao contrário, de ocultar, despistar, nublar, e alimentar o mistério.

Finalmente, Alma concordou que eu juntasse estas notas, talvez supérfluas, para que um público mais amplo possa desfrutar de suas pérolas, e também de seus devaneios. A poetisa tende a acreditar que exegetas do futuro se debruçarão sobre sua obra. Eu também acredito. Mas como editora quero, desde já, que um maior número de seus leitores e fãs aproveitem o seu rico pensamento, que parece transitar entre tantos séculos, como ela insinua nestes sonetos.


METEMPSICOSES

Prólogo

1
Alma sou, em minha viagem tão antiga 1
Pelos corpos de pintoras e pintores,
Poetisas também, ó minha amiga,
Que em Safo conheci os meus amores! 2

Neste ciclo contarei como fui bela 3
E os motivos que tenho pra cantar;
Direi como vim até Florbela 4
E a nossa obsessão de tanto amar.

Depois, como cheguei neste meu Pampa 5
Para, em plenitude, ser só Alma,
“La Welt”, sim, subindo a rampa,

Que nesta “Paulicéia” encontro calma
Para compor meus quadros e meus versos,
Nestes Jardins, afinal tão controversos.



*Notas da editora:

(1) Alma, como muitos artistas, crê na Metempsicose, isto é, a transmigração das almas, no sentido platônico. A necessidade ( Ananke) das almas viverem sucessivas encarnações (dez ciclos de mil anos, segundo Platão e o Orfismo), afim de recuperarem as asas e voltarem ao Empíreo (a morada dos deuses e das almas purificadas).

(2) Alma se inspira em Safo, a grande poetisa lírica da ilha de Lesbos. Tem motivos para crer ser ela uma de suas encarnações.

(3) Alma mantém neste ciclo de sonetos o seu achado único de contar estórias através de de sua seqüência.

(4) Alma crê ter sido também Florbela Espanca, no início do século XX, a grande lírica e amorosa portuguesa, grande mestra do soneto.

(5) “La Welt” - expressão usada por um seu amigo que vê nela, desde já, uma futura celebridade, com sua vocação indisfarçável para diva. “Subindo a rampa” : subindo para o planalto de São Paulo, ou para um estágio superior em sua carreira de artista.


Transmigrações I

2
Com Renina exercitei-me no anagrama
Para enfim encontrar o De Faria, 6
O pintor que mostrou quanto me ama
Retirando meu navio da calmaria.

E agora, calma, plena, amando Buda,
Posso passar a limpo o meu destino
Contado a partir da monja Guda 7
(mulher de pincelzinho muito fino),

Como transmigrei por belas vidas
Escolhendo primeiro as artesãs
Que transcenderam, para além dos seus afãs

E muito amaram sem deixar as suas lidas
De poetas e pintoras aguerridas,
Que agora colhem louros, novos fãs.8


Notas:
(6) De Faria (Guilherme de Faria), o artista plástico e poeta de cordel que descobriu Alma, lançou-a e que a prefacia, sendo também seu maior amigo em São Paulo. “... retirando meu navio da calmaria”- Guilherme descobriu Alma muito quieta em seu ateliê paulista, e atirou-a numa roda-viva ao descobrir sua obra literária inédita.

(7) A poetisa cita aqui a sua encarnação do ano 950, Guda, Monja que assina (em latim), pela primeira vez, um códice, obra prima de iluminuras pintadas por ela.

(8) Tendo sido relacionadas, finalmente, por pesquisadoras feministas, no séculoXX , um rol de grandes mulheres artistas renasce para a fama, conquistando fãs, a partir de data recente. Algumas já se tornam “cults”, como Florbela Espanca (séc. XX), e Artemísia Gentileschi (séc. XVII).



Transmigrações II


3
No “Claris mulieribus” já constava 9
E Boccacio revelou minha passagem;
No quatorze, portanto, já pintava,
E o poeta poupou-me sacanagem.

Sofonisba fui no dezesseis 10
E a angústia da Anguissola experimentei
Mas no “Jogo de xadrez” realizei
A obra que afinal reconheceis.

Como Artemísia, Agostino me estuprou 11
E sua calúnia em parte procedia,
Todavia fui eu quem prosperou.

A Sirani, minha serva a envenenou, 12
Não antes que pintasse imensa obra,
Aos vinte e sete, que em Alma ainda cobra.


Notas:
(9) “Claris mulieribus”, obra de Giovanni Boccacio, que recolhe 104 biografias de mulheres e que destaca um grupo de pintoras.“... o poeta poupou-me sacanagem) – Alma parece querer dizer que uma encarnação sua está entre estas biografias, que se distanciam do caráter malicioso da abordagem das mulher na obra mais famosa de Boccacio, o “Decameron”, recheada de divertidas passagens pornográficas.

(10) Sofonisba Anguissola (1528 –1628), grande pintora do Renascimento, que ficou cega aos sessenta anos, e que foi mestra de Van Eyk ( segundo depoimento deste). Sua obra “Jogo de Xadrez”, que representa um grupo de mulheres jogando, foi considerada uma obra-prima do gênero, naquela época.

(11) Artemísia Gentileschi ( 1593-1652), revela um “pathos”em sua obra,toda ela tematicamente comprometida com temas sanguinários, de personagens masculinos sendo mortos por mulheres heroínas (Judith e Holofernes) depois de terem sido estupradas, ou mulheres acuadas por homens (Susana e os velhos). Tais temas parecem exercer uma função catártica na vida de Artemísia, que foi ela própria violentada aos dezessete anos por um condiscípulo (Agostino Tassi) de seu pai Orazio Gentileschi, e que ainda caluniou a estes, em juizo, atribuindo-lhes uma relação incestuosa entre pai e filha. Artemísia foi torturada na inquirição do processo.

(12) Elisabetta Sirani (1638-1665), grande pintora e gravadora do século XVII , que fundou uma escola para pintoras, em Bolonha, e que parece ter sido envenenada por uma criada, morrendo aos vinte e sete anos, mas deixando imensa obra. Alma sugere que esta encarnação cobra a ela que pinte muito, igualmente.



Transmigrações III

4
Antes da Anguissola, Bianca fui, 13
Capello, com a fama de fatal,
Que minha inocência não polui,
Mas ainda me confunde como tal.

Mas foi no dezenove que revi
Essa minha natureza em plenitude,
Transformando essa pecha em virtude,
Talento e beleza da D’Affry 14

Que me foi revelada no Foyer
Quando defrontei-me com a “Pythie”
Como algo que afinal reconheci.

E pude então amar o Jean-Baptiste 16
Como já o fizera no ateliê,
Tornando-o feliz... e logo triste.


Notas:
(13) Bianca Capello, “femme-fatale” veneziana, do século XVI, casou-se com Francesco de Médici, mas tinha sido suspeita de envenenar o primeiro marido.

(14) Adèle D’Affry, duquesa Castiglione-Colonna (1836-1879), a maior escultora do século XIX, além de pintora e desenhista. Considerava-se uma encarnação de Bianca Capello. Assinava “Marcello”, pseudônimo masculino para não ser discriminada no Salon de Paris. Sua “Pithie” (em francês pronuncia-se Pissí, daí a rima no soneto da Alma) é sua obra-prima, uma espécie de auto-retrato mítico, que ostenta serpentes nos cabelos, como a Medusa, e que tem significado obscuro, mas decifrado pela própria Alma na sua novela “Perséfone”, onde ela revela como descobriu esta sua encarnação passada. Novela notável, e misteriosa, ainda inédita.

(15) A obra “Pithie”, assinada “Marcello”, encontra-se num nicho do Grand Foyer do Opéra de Paris, adquirida por Jules Garnier (arquiteto do Opéra), no Salon de 1870, para ser colocada ali. Alma conta em sua novela “Perséfone” como defrontou-se pela primeira vez com a escultura neste saguão por ocasião da estréia de uma montagem da ópera Carmen, descobrindo a sua relação com a a grande escultora da belle-époque.

(16) Jean-Baptiste - Aqui Alma se refere ao personagem de sua novela Perséfone, que seria, por sua vez, uma reencarnação de Jean-Baptiste Carpeaux, (1827-1875) o grande escultor francês, que foi amigo de Adèle, e que presumivelmente a amou.



Musas

5
Aline, alma minha, outras urdem 17
Teu destino atual, aquelas musas:
Hébuterne, Siddal, Jane Burden,
Devo em ti encontrá-las, pois, difusas.

Amadas dos pintores, sois maiores,
Eternisadas em beleza pelas tintas
Que não morrem, como morrem os amores
E as belas carnes que a natureza pinta.

Pintei-te, bela e nua, ao meu lado, 18
Assim eternizando a juventude,
Duplo retrato nosso foi plasmado!

E ainda confundi nossos metiês, 19
A paleta no meio, como vês,
Para enfatizar a completude...


Notas:

(17) Alma insinua com este verso, que Aline também é reencarnação de várias musas de pintores, como as citadas Jeanne Hébuterne (mulher de Modigliani), Elisabeth Siddal modelo e esposa do pintor e poeta “pré-rafaelita” (escola pictórica inglesa do séc. XIX) Dante Gabriel Rossetti, que continuou a cantá-la em verso e pintura depois de sua morte prematura, por toda a sua vida; e finalmente Jane Burden, nome de solteira de Jane Morris, que, modelo do pintor também pré-rafaelita inglês William Morris, continuou seu modelo depois de casada com ele, e cujo rosto é o de todos os personagens femininos de sua pintura.

(18) Neste verso, Alma se refere à pintura por ela feita, um duplo retrato dela e Aline nuas ladeando um cavalete com uma tela que reproduz a mesma cena, com insinuação do espelhamento infinito. O quadro original não existe mais, pois foi destruído, num acesso de ciúme por Pedro, ex-namorado de Aline. No entanto, pela descrição da obra feita por Alma ao pintor Guilherme de Faria, este reproduziu-a conforme sua imaginação, produzindo uma tela de 100x100cm que foi premiada numa exposição no MUBE, em São Paulo em 2003. A obra de Guilherme e Welt está reproduzida na capa do CD “Sonetos da Alma”, gravado pelo pintor co acompanhamentos de piano e orquestra, dos grandes românticos como Chopin, Liszt, Shumann, Shubert, etc.

(19) Na pintura mencionada, o duplo retrato de Alma e Aline descrito no soneto 12 do ciclo “Sonetos da Alma”, gravado em CD com leitura de Guilherme de Faria, a paleta colorida de Alma está no chão , no centro, aos pés do cavalete,ladeado pelas duas moças em nu frontal, produzindo uma ambigüidade e a pergunta:‘‘...qual a pintora?”


Saga
6
Voltei, reconciliei-me com a estância 20
Onde sei que enfim renascerei,
Aqui, onde amei Rodo em minha infância
Sob a égide do Vati, que era o rei.

Para aqui trouxe Aline, minha amada,
Encontrando afinal a perfeição
Depois das agruras da jornada
Que encerrou-me, uma noite, na prisão 21

Tinha encontrado a safra inesperada, 22
Perdi-a, encontrei novo tesouro,
Salvei a terra, o jardim e a morada.

Que mais viver, o que esperar, ó minha vida?
A cada dia, a passagem enriquecida...
Como mais amar, ó coração?


Notas:

(20) Essa volta é o começo do romance autobiográfico A Herança, de Alma Welt.

(21) Na segunda parte do romance A Herança, denominada “A Ara dos Pampas”, consta uma cena onde Alma, indiciada, passa uma noite na cadeia, antes de começar o processo.

(22) No romance, Alma conta como encontrou uma safra de dez mil garrafas de um vinho de quarenta anos, deixada pelo seus avós como a herança material que salvará a estância de suas dívidas acumuladas.



Doação

7
Dou a luz poemas e pinturas,
Aline, perdoa-me, queres mais:
Um filho, eu sei ( ó criaturas,
eu as vejo e sei o quanto amais!) 23

Vejo o teu, o nosso filho, como é lindo!
Por isso resolvi estar dormindo 24
Enquanto colhas a semente noutra parte,
Para, com o nosso amor, engravidar-te.

E então ver o teu ventre assim crescendo,
Com a minha ternura e o meu desvelo,
A trama do Destino entretecendo

De uma nova guirlanda, “more and more”
Esperando, ansiando já, por vê-lo,
Sabendo o coração ainda maior.



Notas:
(23) Alma, como artista, parece ter um certo afastamento contemplativo, mas reconhece e até compartilha a necessidade que vê em Aline de ter um filho, e antecipa esse olhar sobre a cena maternal, nesse curioso verso.

(24) A artista sugere aqui algo espantoso: Aline teria se deitado com Rôdo, irmão de Alma, com ela presente no mesmo quarto (no mesmo leito?), enquanto Alma fingia dormir, para que Aline pudesse conceber uma criança, que elas criarão juntas.


Celta

8
E eis que narrei a minha saga
Nesta passagem pelo vinte e vinte e um 25
Nada fiquei devendo àquela maga
Que fui, chamada Deirdre, não Gudrun, 26

E que, druidisa, já queimava
As ervas ainda úmidas de orvalhos,
E que colher o visgo dos carvalhos
A plena permissão muito me honrava. 27

Nesta minha atual vivência em corpo
O tive invadido, torturado
Por duas vezes, entre amores, violado. 28

E ainda sou vestal da minha alma
Pura, em meu desejo desfrutado,
Nutrindo o coração, que não se acalma.



Notas:
25)Alma vê a sua vida, com razão, como uma saga nesta sua “passagem” pelo final do século XX e começo do XXI. Mas suas reminicências de outras vidas remetem-na, nestes versos, a uma misteriosa druidisa, Deirdre.

(26) Deirdre, quer dizer “filha da Irlanda”, em língua gaélica. Não pudemos conferir a existência real de tal personagem, mas as palavras “...e não Gudrun”, parecem confirmar a surpresa da própria Alma em não se tratar de uma donzela germânica, mas celta.

(27) Este verso sugere que as druidisas eram raras, talvez excepcionais, e que necessitavam de permissão especial do Conselho dos Druidas (quase sempre anciãos), para colher o visgo, “com a foice de ouro”.

(28) Este “salto” no tempo, que Alma realiza nestes versos, mencionando dois momentos de violência que sofreu nesta sua atual encarnação, querem reforçar a convicção de sua pureza anímica, que a confirma nessa persistente natureza de sacerdotisa (vestal), pítia ou pitonisa em outros momentos.


Profissão de fé

9
Amores meus, mananciais da minha vida,
Afluentes de um rio imponderável,
Vinde todos a mim, deixai a lida
Por momentos, e tomai-me, insaciável.

Como é belo viver assim tomada,
Possuída, cantando Arte e Amor!
Não me venham, pois, com a maçada
Dos trabalhos e os dias, e o rancor. 29

Não me falem de metas e carreiras,
Dos vulgares conceitos deste século,
Da social questão, e das barreiras!

Que tenho eu, Alma, com esse mundo
Que vejo tão somente pelo espéculo 30
De um olhar de artista, mais profundo?



Notas:
(29) “... Os trabalhos e os dias”, esta expressão nos remete ao título da famosa obra poética de Hesíodo, mas a palavra “maçada” (aborrecimento) anterior, e “rancor” (em seguida), muda-lhe o sentido, sugerindo a idéia de tédio, do cotidiano.

(30) A palavra “espéculo”, aqui (além de rimar com “século”), pela primeira vez no vocabulário da Alma, é particularmente interessante por derivar de um aparelho médico de exame das partes íntimas, que o seu pai , o cirurgião Dr. Werner, tinha em casa, e que causava impressão na menina Alma, ao mesmo tempo que de grande riqueza etimológica, nos remete a “speculum” ( espelho) e também à sua derivada “especulação”.


Epílogo

10
Fechem-se as cortinas, por enquanto, 31
Caia o pano, pelo menos neste ato
Saio de cena, o rosto sob um manto,
Na coxia aguardando o entreato.

É quando percebo o improviso 32
De minha vida, sem roteiro, sem destino:
Vou construindo a peça em meio ao riso
E os aplausos de um público ladino 33

Que comovido, vislumbra nesta atriz
A marca da Bernhardt, ou Plissetskaya, 34
Pela ardência da paixão, e pede bis,

E volto, então, ao palco, deslumbrada
Pelas palmas, malgrado a pateada
Dos tolos... que preferem tola vaia. 35

FIM


Notas:
(31) Alma quer interromper o fluxo constante de suas experiências espirituais, como para um balanço, que ela compara a um entreato ou intermezzo musical.

(32) Alma pondera que o “destino” é construído constantemente numa espécie de perpétuo improviso, não estando portanto pré-escrito, o que coincide com o conceito do “livre arbítrio” , que confere valor individual às vidas.

(33) Alma , com ingênua astúcia, bem feminina lisongeia o publico que a aplaude, chamando-o de “ladino” (esperto), por saber apreciá-la...

(34) Alma sonha com um público culto, que a compara à célebre atriz Sarah Bernhardt (1844-1923), e com a grande bailarina russa Maya Plissetskaya, que, ela própria bailarina (vide o conto Pas-de deux,, dos “Contos da Alma”), considera uma deusa .

(35)Alma, como boa artista, descarta os possíveis opositores de sua arte, como tolos. Mas faz isso com candura e humor, como é de sua índole.

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